Com o passar dos anos, a voz de Leonard Cohen (1934-2016) tornou-se mais profunda. Não tratemos de justificar a aspereza adquirida “apenas” pelas “500 toneladas de uísque e, vocês sabem, um milhão de cigarros”, como ele costumava dizer. A pergunta, um tanto metafórica, que sua voz nos provoca é: o que o agravamento dela pode nos dizer sobre suas palavras? A voz de Cohen nos mostra o acúmulo de suas experiências humanas, um jogo de claro-escuro, de todas falhas e ranhuras. E é justamente através das as falhas por onde entra a luz. Em A chama: Poemas, letras, desenhos, notas, livro póstumo, essa tal claridade nos atinge a retina. A obra ganha edição brasileira pela Companhia das Letras com tradução de Caetano W. Galindo.
A publicação ilumina os contornos da efígie de Cohen, em 63 poemas escritos ao longo de décadas, somados a outros poemas que viriam a tornar-se letras de música como Obrigado pela dança, faixa título de seu álbum póstumo de 2019, além de autorretratos e do discurso proferido ao receber o prêmio Príncipe das Astúrias, na Espanha, em 2011. O trabalho teve como pivô importante seu filho, Adam Cohen. Contudo, fato importante é que o poeta preparou-se para sua morte, deixando instruções claras sobre o que fazer com sua obra e participando dela até seus últimos dias.
Quando imaginamos o trabalho de figuras canônicas como Leonard Cohen, somos acometidos inicialmente pela ideia de brilhantura. Todavia, em A chama, o poeta opta por levantar o fracasso como estandarte de abertura dos caminhos de seu trabalho final: “Minha fogueira fracassou/ Mas essa chama ainda é forte”. Era o tipo de artista que sabia que somente ao abandonar a obra-prima, a verdadeira obra-prima nasce. “Se não houvesse quadros no mundo,/ Os meus seriam muito importantes./ A mesma coisa com as canções./ Como não é o caso, corramos para entrar na fila,/ Bem lá no fim”, escreve ele, preterindo a si mesmo.
O ano era 1974. O então presidente Nixon renunciara seu cargo, Nova York via surgir grupos como Blondie e os Ramones, enquanto Cohen cantava um amor de seis primaveras atrás, no quarto 424, em 1968, no Chelsea Hotel, em Manhattan. Os corredores desse hotel viram passar uma geração de “lindos perdedores”,[nota 1] astros imbuídos na arte de fracassar aos olhos da sociedade “pós american way of life”, sendo o músico um de seus expoentes. Uma arte que cultivou por um bom tempo: em 2005, chegou a queixar-se de sua situação financeira. Esses personagens astronômicos e erráticos ganham as páginas do livro sempre em lampejos anacrônicos, de Bob Dylan a Kanye West, como se o rapper fosse mais um morador desse hotel, no poema Kanye West não é Picasso.
Para Cohen, o título de “poeta” só deveria ser concedido a alguém no fim de sua vida. Isto não o impedira de desde de jovem buscar desesperadamente por sua voz. “Eu estudei os poetas ingleses e conheci bem suas obras, copiei seu estilo, mas não encontrei uma voz. Foi apenas quando li as obras de Lorca, mesmo que em tradução, que pude compreender que ali havia uma voz”, lembrou ele ao receber o prêmio Príncipe das Astúrias.
A voz que encontrou para si é única para poemas e música, por assim dizer, o que fica bastante claro nas escolhas desta edição. Diferente de Dylan, um exemplo sempre citado de músico-poeta de sua geração, Cohen tinha uma relação direta com o texto publicado nas páginas. Dizia que não havia diferença entre poesia e música, e que algumas coisas nascem primeiro como canção, outras nascem primeiro poema e outras, as duas simultaneamente. É justamente essa simultaneidade potente que conecta linguagem a objeto em seus poemas: a chama queima em duplos, o amor e a morte, a memória e a presença, o fim e o começo.
Vinte anos depois da estadia dele no Chelsea Hotel, o Muro de Berlim permanecia em pé e as ogivas ainda causavam pânico coletivo. O músico cantava sobre tomar Manhattan e, em seguida, partir para Berlim. Poucos anos depois, passou a viver no mosteiro Mount Baldy Zen Center. Em 1996, fez voto de silêncio e foi ordenado monge zen. Sua experiência de “exílio” lhe rendeu a relação com Roshi, seu guia espiritual e agente modificador da cosmovisão espiritual do músico, além de personagem de poemas. Alguns desses, inclusive, criados a partir da experiência de produzir em isolamento, um tanto diferente do que experienciamos de forma coletiva nesta pandemia, mas que não nos deixa de contar sobre a solidão humana.
Da espiritualidade aguçada desde a infância, tornou-se uma voz profética de contornos místicos. Não à toa, o primeiro poema que o emocionou havia sido lido num templo religioso, na liturgia da sinagoga. Contudo, começou a escrever de fato para conquistar as meninas. E todo talento é mais bonito quando desvirtuado. Como poeta e músico, Cohen aprofundou sua poesia ao mergulhar na imagem panorâmica que a experiência humana pode ter: de ladies man, cigano, passando por monge exilado, sempre espirituoso, dizia que deixou tudo para trás em busca da beleza. Deixou tudo sempre que pôde, mas sem perder a malícia: “Eu nunca penso n’O Passado/ mas às vezes/ O Passado pensa em mim e senta /bem de leve na minha cara”.
NOTA
[nota 1] O termo dá nome ao segundo romance de Cohen, Beautiful losers (1966), geralmente traduzido para o português como Belos vencidos.