Silviano Santiago 13

 

 

Um livro que seja ficção e ensaio, valendo-se da pesquisa e da teoria, enquanto se deixa levar pela imaginação do que poderia ter sido. Um livro na primeira pessoa, cujo eu seja fruto de elaboração generosa sobre a vida e o estilo de um outro. Um livro que seja um diário, anotação do cotidiano de uma pessoa e de uma época, e tome distância do presente através da ficção. Um livro que reflita sobre o ato de escrever, sem colocá-lo acima dos problemas concretos da sobrevivência em um país como o Brasil. Poderia ser um projeto de escrita, mas é a tentativa de descrição do romance Em liberdade,* de Silviano Santiago, agora reeditado pela editora Companhia das Letras, cuja primeira edição é de 1981, ainda sob ditadura e posterior à Lei da Anistia.

Em liberdade, “uma ficção de Silviano Santiago”, é um diário apócrifo do escritor Graciliano Ramos, que se inicia a 14 de janeiro de 1937, com sua saída do cárcere, depois de 10 meses e 10 dias preso pela ditadura de Getúlio Vargas, e se encerra a 25 de março do mesmo ano, registrando o início de sua existência em liberdade: o reencontro com a esposa, Heloísa, procurando reatar uma relação esgarçada pela distância e pela dureza do que foi vivido; o convívio com amigos e conhecidos do meio intelectual do Brasil da época, como José Lins do Rego, em cuja casa o escritor e sua esposa se hospedam no primeiro mês. Ali, aconteceram algumas tensões relacionadas, sobretudo, à resistência de Graciliano a se colocar no lugar de mártir; a adaptação a um corpo frágil, depois das torturas e privações da prisão, que tenta recuperar o desejo pela vida; a recuperação de um projeto de escrita, que acontece quando ele se desloca para a experiência de uma outra vítima do confronto com o poder, Cláudio Manuel da Costa, o poeta e rebelde do período colonial.

Nem propriamente intertextualidade – muito europeia, muito anos 1960 – nem escrita não criativa – norte-americana demais, tendência atual –, então, o que é Em liberdade? Entre esses modos de escrita, o livro sinaliza que, para quem escreve no Brasil, na América Latina, o procedimento, a erudição e demais investimentos literários não bastam. Se, por um lado, vale ativar essa rede de referências de literaturas que exibem seu caráter de apropriadoras de uma tradição, colocando o romance de Santiago em uma série temporal, em diálogo com experimentações que expandem as possibilidades do literário, por outro, é preciso destacar que se trata de um outro modo de escrita, cuja singularidade reside em se situar em um lugar específico, periférico, que não pode prescindir desta explicitação: escreve-se com um corpo – corpo que, moribundo, será reescrito por ele no conto inédito acrescido à nova edição – irremediavelmente afetado pelo seu entorno, que pode chegar a colocar em risco sua liberdade e sua sobrevivência.

Em liberdade é um livro de alguém que quer sobreviver, pela escrita. A tentação de se abandonar a um corpo que não reage, sofrido, porque foi oprimido física e emocionalmente. “O único motivo – pelo menos o mais forte – que vejo no momento para poder deitar as minhas frases no papel é que quero não sentir o meu corpo”, escreve o Graciliano de Santiago. No Brasil, aprendemos duramente, as opressões de ontem podem ser as de hoje. Para que a ficção dê conta disso, é preciso produzir dobras temporais: neste caso, Silviano que escreve sobre Graciliano que escreve sobre Cláudio – os anos 1970 que se dobram sobre os anos 1930 que se dobram sobre o final do século XVIII, mise en abyme situada politicamente, apropriada de André Gide, mestre francês referido na Nota do editor do Manuscrito, que abre o livro.

Nessa nota está ficcionalizada a origem do manuscrito, que teria sido entregue ao editor, Silviano Santiago, por um amigo de Graciliano Ramos, cujo anonimato se deve resguardar, já que o autor lhe teria solicitado que o queimasse. Se o manuscrito e suas derivas são inventados, não as trajetórias de vida de Graciliano e Silviano, que, assim como os nomes, têm suas rimas: os dois abandonaram seus estados de origem, Alagoas e Minas Gerais, respectivamente, e acabaram se instalando no Rio de Janeiro, personagem central do livro. Segue-se à nota de abertura uma outra, Sobre esta edição, em que o editor estabelece uma relação direta e contraditória entre o diário Em liberdade e as Memórias do cárcere, publicado postumamente em 1953: era preciso recalcar o primeiro, relato colado na experiência diária da liberdade, para escrever o segundo, as memórias que tomam distância da experiência do cárcere.

Antes de terminar, preciso confessar que não escrevo sozinha. Além, é claro, do tanto que a crítica produziu sobre o livro ao longo desses já mais de 40 anos, escrevo com o próprio Santiago, que no final de 2020 publicou Fisiologia da composição, cuja primeira parte está dedicada, simultaneamente, à criação de Memórias do cárcere e de Em liberdade. Escrito durante a pandemia e, uma vez mais, sob um governo autoritário, o livro é marcado por uma pergunta acerca de como escrever a experiência do presente – com que distância e com que liberdade – que acrescenta uma nova dobra temporal a Em liberdade. “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer”, lemos em Memórias do cárcere. Com o seu romance, Silviano faz suas as palavras de Graciliano e nos faz percorrer caminhos possíveis de liberdade.

 

* A nova edição de Em liberdade será lançada em 5 de abril de 2022. A pré-venda está disponível no site da editora, clicando aqui