Enquanto lia A metade fantasma, romance do escritor argentino Alan Pauls (foto), recém-lançado no Brasil, um elemento do livro me fascinava em particular: a maneira como os mundos digital e físico se relacionavam ao longo da trama.
A narrativa acompanha bastante de perto a vida de Savoy, um homem de 50 e poucos anos, morador de Buenos Aires, que, na contramão do mundo em que habita, dispõe de uma relativa estabilidade financeira, o que lhe rende muito tempo livre. Savoy não é alguém muito familiar com o mundo digital, pelo contrário, se ressente dele. Em vários momentos chega a afirmar-se como um pária, recusando-se a comprar um smartphone e, inclusive, olhando com um certo desdém para aqueles que passam grandes porções de sua vida online. Isso é algo que acaba por assumir uma importância grande no romance, pois, se em um passado recente viver grande parte da sua vida online era uma escolha, cada vez mais as diferentes plataformas digitais têm se tornado um local de trabalho entre os mais comuns e a decisão de não participar delas, um privilégio.
Todavia, diante dessa crescente e compulsória digitalização, o romance de Pauls – publicado originalmente em 2021 e agora lançado por aqui com tradução de Josely Vianna Baptista – se dedica em elaborar as diferentes maneiras como, para um homem da geração e da classe social de Savoy, o mundo virtual acaba por ganhar um aspecto de mistério, talvez até mágico. O interessante é que esse fascínio ocorre não contradizendo a recusa da personagem pelo online, mas justamente por causa dela: sentimos, de fato, mais estranhamento por aquilo que não olhamos diretamente, que olhamos de relance. Essa questão pode ser percebida já no início do livro, momento em que Savoy se vê fascinado primeiro pelo hábito que ele recentemente adquiriu de visitar apartamentos para alugar, e, depois, pelas maneiras como este hábito se desdobra para o mundo das compras online de produtos de segunda mão.
Como logo fica claro para a personagem em suas visitas aos apartamentos e casas de vendedores, essa prática não estava aperfeiçoando um talento ou uma habilidade útil. Tratava-se, no entanto, de um certo tipo de prazer ou até mesmo de um vício. Uma sensação elétrica que Savoy sentia ao adentrar rapidamente na casa de alguém e se deparar com fiapos de uma vida espalhada pelos vários objetos largados em diferentes cantos, pelas manchas amareladas de cigarro nas paredes e pelos quartos escuros demais para que fosse possível ver qualquer coisa. Tal como coloca o narrador em dado momento, Savoy se surpreende com a possibilidade de ir a uma garagem em uma região afastada da cidade e adquirir uma velha luminária que um senhor tinha desde a infância – uma aquisição via internet.
Mas, se esta relação entre o fascínio e a empáfia de Savoy com o mundo digital já se fazia presente nessas primeiras manias, é em um segundo momento que ela toma a centralidade da trama. Refiro-me ao momento em que o protagonista conhece e se apaixona por Carla, uma mulher na casa dos 30 anos, que vive uma vida nômade, dando aulas de idiomas online, viajando pelos mais diversos países sem nunca se estabelecer por muito tempo e conseguindo hospedagens gratuitas como house sitter.
Embora tenham se conhecido em uma temporada em que Carla estava cuidando de um apartamento em Buenos Aires e que permitia que os dois se encontrassem, rapidamente ela parte – como sempre fizera, e continuaria fazendo – para seu próximo destino. Os dois acabam adentrando em um relacionamento que transcorreria pelo futuro visível dentro dos quadradinhos das videochamadas, e com o qual Savoy nunca chega se acostumar totalmente.
No entanto, não há uma mudança drástica no protagonismo do romance. Carla permanece distante (inclusive fisicamente) do centro da narrativa, que seguem sendo Savoy, sua vida e suas obsessões. Mas não penso que esta seja necessariamente uma falha do romance, que represente o típico caso do escritor homem que por algum motivo não desenvolve a personagem feminina que permanece como um interesse amoroso para o protagonista. Pelo contrário, penso que é justamente através desta falta de protagonismo que se torna possível vislumbrar tanto a distância que permanece a todo o momento entre os dois quanto certos aspectos mais sombrios da personalidade de Savoy. Ele rapidamente começa a transformar sua própria incapacidade de se aproximar de Carla em ciúmes, e seus ressentimentos e desdém em relação a um mundo que já não entende crescem mais ainda. Fica sugestivo dizer que Savoy tem alguma vocação para o posto de Dom Casmurro. Fica a recomendação de uma certa dose de ceticismo em relação à confiabilidade da narração, sempre muito próxima à perspectiva de Savoy.
Desta forma, A metade fantasma – que sai no Brasil junto da reedição de O passado – é, da primeira à última página, um romance sobre as dificuldades de seu protagonista em se relacionar com um mundo contemporâneo que o assusta, diante de uma alteridade que o desafia. Suas obsessões com a internet, bem como sua incompreensão do modo de viver de Carla, são espelhos dessa maneira de viver que, conforme avançamos no romance, torna-se insustentável.