Suely Rolnik Divulgação fevereiro.22

 

“DA ADVERSIDADE VIVEMOS!”, proclama Hélio Oiticica (1937-1980) em Esquema geral da nova objetividade, artigo seminal escrito por ele para a exposição Nova objetividade brasileira, realizada em abril de 1967, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/ RJ). Produzida por um notável grupo de artistas e críticos, a mostra contava com a participação de nomes oriundos do concretismo e do neoconcretismo, assim como de integrantes da nova figuração e de outras vertentes artísticas, todos reunidos em torno da noção de “nova objetividade”, que começara a ser definida por Oiticica com o objetivo de examinar a situação da vanguarda brasileira que, segundo o artista, era “vanguarda mesmo e não arremedo internacional de país subdesenvolvido, como até agora o pensa a maioria das nossas ilustres vacas de presépios da crítica podre e fedorenta”.

Apresentando-se na ocasião como artista e teórico, Oiticica garantiu ser possível definir o acervo de criações do Brasil como um fenômeno novo no cenário internacional, produzido de maneira independente das manifestações estadunidenses e europeias. Dessa forma, por nova objetividade dever-se-ia compreender o agrupamento de múltiplas tendências em curso no campo da arte contemporânea, sem qualquer dogmatismo ou unidade de pensamento.

Em Esquema geral da nova objetividade, Oiticica expõe um prodigioso panorama da arte brasileira, resumindo os principais pontos da vanguarda e defendendo uma proposta de atualização da antropofagia de Oswald de Andrade (1890-1954), considerada por ele como o primeiro sinal de uma “vontade construtiva” na cultura brasileira, um modo bastante particular de lidarmos com as influências externas: “A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e a principal arma criativa, essa vontade construtiva, o que não impediu de todo uma espécie de colonialismo cultural, que de modo objetivo queremos hoje abolir, absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia.”


A RETOMADA DO LEGADO ANTROPOFÁGICO

Como narra Suely Rolnik em Antropofagia zumbi — ensaio publicado pela primeira vez em 2005, na França, e recém-editado em livro pela Coleção Lampejos (n-1 edições e Hedra), com pequenas alterações e novas notas de rodapé que atualizam ideias presentes no texto —, as vanguardas brasileiras da década de 1920 retomaram a imagem dos banquetes antropofágicos descritos pela literatura colonial, em especial a cena da deglutição do bispo Sardinha pelos Caetés, ocorrida em 1556, e o célebre relato de viagem do aventureiro alemão Hans Staden, lançado em 1557. Com este gesto, os artistas modernistas de São Paulo, sobretudo Oswald de Andrade, extrapolaram a literalidade da antropofagia ritual para dela extrair uma leitura simbolista da relação com o outro, transferindo uma espécie de metafísica da predação ontológica para a sociedade brasileira como um todo, já que, segundo seus proponentes, esta seria a política de produção cultural predominante no país: absorver o outro e, neste processo, alterar-se.

Para Rolnik, a ideia de antropofagia, tal como elaborada pelo movimento modernista, deve ser compreendida não só como resposta poética e irreverente à necessidade de afrontar a imposição das culturas colonizadoras, mas também como afirmação do processo de hibridação presente na formação do Brasil (sem com isso negar a violência intrínseca a esse processo), tomando a diferença, em detrimento da identidade, como valor primordial a ser afirmado.

Em sua tese de doutorado, defendida no final da década de 1980, a psicanalista apresentou, pela primeira vez, o conceito de “subjetividade antropofágica”, analisando como os movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970 produziram um longo processo de absorção das invenções elaboradas pelo modernismo, transbordando o território restrito das vanguardas artísticas para transformá-lo numa ampla e ousada experimentação cultural. 

Influenciada por seu forte envolvimento com a contracultura no Brasil e na França, onde permaneceu exilada nos anos 1970, parecia-lhe então necessário nomear a “política do desejo” inventada por sua geração, propondo uma reativação daquele modo de subjetividade que no Brasil fora tão atacado pela truculência da ditadura militar. Desde então, Rolnik tem reelaborado a ideia de subjetividade antropofágica para atualizar a singularidade de tal processo, em função do contexto em que ele volta a operar.


O COLAPSO DO SUJEITO MODERNO

A autora entende a contracultura como uma vigorosa reação à sociedade disciplinar que acompanhava o capitalismo industrial, com sua subjetividade e cultura identitárias que deram forma à figura do sujeito moderno. Afinal, como ela argumenta, modos de subjetivação são plásticos e se transformam em função da perda de sentido das cartografias existenciais em curso: “É por meio de um determinado modo de subjetivação que um regime sociocultural, seja ele qual for, toma corpo; ou seja, a cada regime corresponde uma política específica de produção de subjetividade”.

Disputando o diagrama de forças presente no campo social, os movimentos contraculturais promoveram diversas linhas de fuga em oposição ao regime de inconsciente dominante. Para tanto, a política do desejo que emergiu tomou partido da fluidez e da hibridação, uma liberdade de experimentação para instaurar novos territórios existenciais e de plasticidade subjetiva em oposição às identidades fixas, substituindo a unidade individual moderna pela multiplicidade e pelo devir. Foi nesse contexto que a antropofagia oswaldiana foi reabilitada no país. 

Em Verdade tropical, Caetano Veloso escreve que o contato com a obra de  Oswald o levaria a repensar tudo aquilo que entendia sobre o Brasil. Segundo ele, o antropófago indigesto que a cultura brasileira rejeitara por décadas foi também um profeta da nova esquerda e da arte pop. Por isso, haveria pertinência em notar na Tropicália, na esteira da antropofagia, uma certa tendência em tornar o Brasil exótico não só para turistas, mas também para os brasileiros. 

Para Rolnik, não foi por acaso que o movimento antropofágico voltou à cena exatamente naquele período, já que os tropicalistas defendiam um processo contínuo de hibridação e fusão. A própria canção Tropicália, de Caetano, foi assim nomeada em referência à obra homônima de Hélio Oiticica, apresentada na mostra Nova objetividade brasileira


ALIENAÇÃO CANIBAL

Na primeira metade década de 1990, Rolnik retomou o tema da subjetividade antropofágica para pensar a ampla recepção do pensamento de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) no Brasil. Em Esquizoanálise e antropofagia, ela identifica uma imensa ressonância entre a teoria do desejo proposta pelos autores e o modo de subjetivação qualificado por ela como antropofágico, produzido no interior da contracultura brasileira. Esta parecia ser a razão pela qual a esquizoanálise havia se revelado tão fecunda para o exercício da clínica no país. 

Já em 1998, a psicanalista foi convidada a escrever para o catálogo da XXIV Bienal de São Paulo, sob curadoria de Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa, cujo tema era justamente a antropofagia. Mas, diferentemente dos anos anteriores, o problema ao qual se sentia convocada a enfrentar já era outro: o da subjetividade antropofágica em tempos neoliberais. Se para a contracultura pareceu necessário opor ao capitalismo industrial uma lógica híbrida, fluida e flexível, Rolnik percebeu que seria um equívoco tomá-la como um valor em si mesma, já que esta forma de subjetividade, despotencializada de suas características insurrecionais, passava a constituir a lógica dominante do neoliberalismo, produzindo uma legião de “zumbis hiperativos”, sobretudo entre muitos daqueles que viveram intensamente as experiências da contracultura. 

Mas, se os modos de flexibilidade eram semelhantes em sua forma, eles se distinguiam drasticamente por meio do tipo de força que os direcionava. Para descrever as diferenças, a autora propôs os conceitos de “baixa” e “alta antropofagia”, inspirada pelo Manifesto antropófago (1928) de Oswald de Andrade, no qual encontrou a noção de baixa antropofagia definida como a “peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. Rolnik propôs ainda que tais diferenças fossem chamadas de “antropofagia ativa” e “reativa”, em diálogo com a obra de Nietzsche (1844-1900). 

Em Antropofagia zumbi, ela reelabora e aprofunda as questões presentes no texto de 1998, indagando se uma reavaliação crítica do ideário antropofágico poderia contribuir para problematizar o modo de subjetivação próprio do capitalismo contemporâneo. 

Ainda que a política de subjetivação produzida na dobra financeirizada do capitalismo tenha começado em meados dos anos 1970, Rolnik argumenta que demorou, pelo menos, duas décadas para que os efeitos se fizessem sentir e se colocassem como problema no campo da clínica. No Brasil, um fator determinante veio se somar ao processo de colonização das subjetividades: notadamente, a presença da tradição antropofágica no campo cultural. Se esta desempenhara um papel de radicalidade crítica na contracultura, agora seus processos de experimentação tendiam a contribuir para uma adaptação ao ambiente neoliberal, com o país provando ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do capital.

“(…) a antropofagia cultural proposta pelo movimento modernista, e que supostamente seria nossa força maior, não nos impediu de cair na cilada da instrumentalização pelo capitalismo financeirizado das experimentações culturais dos anos 1960 e 1970, instrumentalização facilitada pela reedição do trauma [da ditadura militar] jamais elaborado. Pelo contrário, parece ter facilitado a adaptação à flexibilidade de hibridação, mas neste caso inteiramente destituída de sua força crítica. Convocada em seu polo mais reativo, o que se estabeleceu foi uma espécie de antropofagia neoliberal.”

Portanto, se a antropofagia modernista ainda faz sentido na atualidade (sou daqueles que acreditam que é fundamental lidarmos com seus paradoxos), é sob a condição de afirmarmos sua potencialidade construtiva. Daí a importância de celebrarmos a publicação do ensaio de Suely Rolnik num momento de tantas reavaliações críticas do legado modernista.


BRASIL: DILUIÇÃO NA DIARREIA

Dentre os participantes da contracultura, Hélio Oiticica foi um dos primeiros a perceber na antropofagia o início de uma vontade construtiva na cultura brasileira. A meu ver, o artista e teórico foi também um dos pensadores que melhor compreenderam a tensão topológica entre os campos da micro e da macropolítica, agindo incansavelmente na esfera do desejo e produzindo uma implacável crítica anárquica ao Estado e ao capital. 

Em Brasil diarreia, texto publicado em 1973, ele enfrenta a problemática da flexibilidade cultural em novos termos, mais próximos daqueles trabalhados por Rolnik em Antropofagia zumbi. Àquela altura, Oiticica já havia percebido que apenas um processo marcado por um forte sentido de construtividade seria capaz de impedir a constante diluição de tudo aquilo que se produz entre nós. Sua própria experiência de trânsito entre universos culturais o fazia perceber que a condição brasileira, mais do que marginal dentro do mundo, é “subterrânea”, que tende e deve erguer-se como algo específico e ainda em processo de constituição. 

Ao reforçar a falta de caráter da formação brasileira, Oiticica nos faz um alerta, infelizmente ainda bastante útil ao atual estado de coisas: quem quiser construir algo no Brasil, vai precisar reconhecer a condição diarreica do país e dissecar suas tripas. Ou, em outras palavras, quem quiser construir alguma coisa por aqui, antes, vai precisar mergulhar na merda que nos constitui como sujeitos.