Resenha Gonçalo Divulgação

Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste, este título com jeito de trava-língua de Gonçalo M. Tavares, traz três narrativas independentes bastante contrastantes entre si. O texto que dá título ao livro apresenta o roubo (com direito à decapitação) de uma estátua de Lenin para ser levada de Bucareste a Budapeste; a busca de um homem pelo corpo de sua mãe em Budapeste para levá-lo de volta a Bucareste; e a mínima e decisiva ligação de um traslado com o outro. Em A fotografia: História do vampiro de Belgrado e Episódios da vida de Martha, Berlim, temos respectivamente uma trama – que ao final não deixa de ser de horror – de um inusitado vampiro e seu apetite por fotografias; e cenas da vida de uma jovem mulher em Berlim, às voltas com a força do seu desejo físico, com seu primeiro amante e a cidade de Berlim

Se as narrativas são muito estranhas entre si, também é possível encontrar linhas que as costuram para além do fato de estarem no mesmo volume. E que trazem a possibilidade de pensar o livro como um todo.

O mais óbvio ponto de contato é geográfico (até porque situar no mapa as histórias que conta não é comum nos mais de 40 livros do autor). Todas se passam em cidades que pertenceram ao bloco comunista do século XX. Entretanto, se colocarmos simplesmente assim, parece mera peculiaridade: sim, as narrativas se dão em cidades que foram comunistas. Para que essa escolha ganhe potência, é saudável pensar outras relações possíveis entre os textos que compõem a obra.

Uma dessas relações, se não for notada ao longo da leitura, será explicitada pelo próprio autor nas notas que vem no final do livro. Trata-se do confronto ou da convivência da História com as histórias particulares, familiares, cotidianas, normalmente não registradas com maiúsculas. Pensemos nos sujeitos anônimos e sem biografia pagos para roubar a estátua do histórico Lenin. Ou num homem, o estranho vampiro, que secretamente devora fotos (das Portas de Brandemburgo, por exemplo). Ou ainda na tensa experiência da jovem Martha, lidando por um lado com a urgência imediata de seu corpo pulsante e, por outro, com as narrativas históricas feitas por uma professora num museu e uma cidade que parece ressuscitar perigosos fantasmas. Nessa perspectiva, a geografia ganha relevância no conjunto: soa impossível para pessoas nascidas sob a influência do século XX, ler “Budapeste”, “Bucareste”, “Belgrado”, “Berlim”, num mesmo livro e não voltar os pensamentos para palavras como comunismo, cortina de ferro ou guerra fria. A História. No entanto, aqui ela é sombra. Não está no primeiro plano. Estão, sim, personagens, pessoas que viveram e vivem nas cidades impactando-se umas às outras – mesmo que sem querer – e seus enredos restritos ao cotidiano ou a livros de ficção.

Chama a atenção, ainda, que os textos lidem com imagens que são símbolos de permanência e estabilidade. Temos a coleção (do misterioso colecionador milionário que paga pelo roubo de uma estátua, ou das fotos que o vampiro compila), o museu (de onde Martha parece querer fugir) e a galeria, a fotografia, a estátua. Tecnologias para fixar a memória. Em contraste com esses elementos, os personagens são efêmeros, em fuga, trânsito, perseguição ou errância. Parecem estar sempre em percurso, nunca estáveis. E suas ações desafiam os elementos que sugerem a estabilidade da memória ou do passado: cortam a cabeça da estátua (“aquela estátua sem cabeça poderia ser a estátua de uma pessoa qualquer”), comem fotos, desdenham do museu e de seu discurso (“– Preciso de mijar – diz Martha (…) no meio de uma frase que tinha o século IV ou V depois de Cristo”).

A partir dessa impermanência e do questionamento do que se diz estável, talvez surja uma chave que potencializa a presença no livro das cidades que estão nos títulos das narrativas. Serão essas cidades, tão ancoradas em eventos históricos, a lembrança do quão fugaz é a imagem de uma cidade? Cidades, tanto quanto história, museu ou foto, seriam eternidades perecíveis? Isto é Berlim, aquilo é Bucareste? Basta retornar a uma cidade já visitada, estar um tempo longe de onde moramos, para encontrar outro lugar no mesmo lugar. Cidades envelhecem, se desfazem, crescem, mudam de cor. No entanto, dizemos: conhece Berlim? É incrível. Talvez a resposta pudesse ser “Qual Berlim?”.

Espaço aparentemente cristalizado, porém lentamente etéreo, a cidade surge no conjunto de narrativas como sequência de trânsitos, fugas, movimento. O que seria das cidades sem o trânsito nelas e, sobretudo, o trânsito entre elas? Teriam suas identidades sem a chegada do estrangeiro? Cidades sem fluxo com outras cidades construiriam suas ilusões identitárias? Se o título do livro, Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste, sugere circularidade, vai e vem, ida e volta, os personagens e seus gestos (sequestrar estátuas, cruzar a fronteira com o corpo da mãe, engolir fotos…) sugerem diluição, fuga, impermanência.

Na falta de um “Deus geral dos países (…) que administre não a luz natural, mas as fronteiras do mapa” e nos dê alguma estabilidade, é possível que encerremos essa leitura nos projetando, de algum modo, nos estranhos personagens do livro. Também somos trânsito, pessoas transitórias, sem rumo definido e estável. Tão desorientadas quanto Miklós, cuja única pista para encontrar o cadáver da mãe é a foto de uma escada. Nesse paralelo, viver se torna absurdo como a tarefa do personagem, que “confundia-se então com a de um louco – tocando as campainhas e inventando desculpas para poder observar as escadas de cada prédio”, à margem da história e de certezas.