Em 1937, Manuel Bandeira escreveu que a crônica permite certa leviandade, semelhante ao que se diz quando um rapaz muito moço tem de abandonar os estudos. O poeta comentava a edição de suas Crônicas da província do Brasil. Na esteira da modernização dos anos 1930, as crônicas de Bandeira guardavam o interesse do poeta por um país que desaparecia quase sem deixar rastros.
Nesse mesmo período, Lévi-Strauss desembarcou no Brasil e se incomodou com a rapidez com que a história gravada nas cidades brasileiras desaparecia. Para ele, o Rio de Janeiro parecia uma imensa máquina de apagar esses tempos. E, coroando o apagamento, espantou-se, mais uma vez, ao escutar do embaixador brasileiro na França que os indígenas já não existiam mais no Brasil. “Índios? (sic) Infelizmente, prezado cavalheiro, lá se vão anos que desapareceram. Ah, essa é uma página bem triste, bem vergonhosa da história de meu país. Mas os colonos portugueses do século XVI eram homens ávidos e brutais.”
Diferentemente de Bandeira, Lévi-Strauss seguiu caminho por outras crônicas, responsáveis por desembocar em Tristes trópicos (1955) e em sua etnografia do oeste e centro-oeste brasileiro.
Em Bandeira, as impressões se misturam, textos sobre Mário de Andrade e os modernistas paulistas, jogos de carta, conversas em bares, candomblé, Ouro Preto, Olinda e Recife. Há nele todo o peso daquilo que os antepassados legaram. Percepção não dissociada de outros intelectuais da geração preocupados com as origens da formação brasileira. Concentravam-se em fornecer uma direção aos imaginários do passado e presente brasileiros.
Em Crônica da província do Brasil Bandeira mobilizou percepções já claras em sua poesia, como em Evocação do Recife, onde “Tudo lá parecia impregnado de eternidade”. A homenagem ao Recife velho de sua infância que não existe mais como em sua memória. Visão do passado observada em outros escritores de seu período, como José Lins do Rego, preocupado em descrever em sua obra uma sociabilidade não mais existente, contudo fundamental para o que se seguiu após o fim dos engenhos.
Os intelectuais preocupavam-se em definir, de diferentes maneiras, as origens de nossa formação, ainda que muitas vezes equivocadamente. Escritores como Lúcio Cardoso e Cornélio Penna responderam, a exemplo disso, cada um à sua maneira, às mobilizações modernistas. Disputaram outras direções e espaços na literatura brasileira, cujo peso do passado era nos mostrar as feridas e tragédias em tom intimista. No caso de A menina morta (1954), de Cornélio Penna, um romance sobre os costumes e a ruína da casa-grande, numa escravocrata fazenda fluminense do fim do século XIX.
Dirigidos ao passado, tantos textos diferentes entre si aproximavam-se por serem registros de uma realidade quase fantasmagórica porque em desaparição. Apesar disso, as crônicas de Bandeira apontam que, junto a uma suposta modernização acachapante, outras sociabilidades mais populares, resistentes e vivas, driblavam a força que as empurrava ao fim.
É na crítica ao apagamento dessas sociabilidades que Ronaldo Correia de Brito buscou em Bandeira a inspiração de alcançar um sentimento íntimo do país. Contudo, diferentemente da geração do poeta, sem que os horizontes estejam abertos para uma suposta crença no futuro. Correia é taxativo em seu livro mais recente, A arte de torrar café: Narrativas além da ficção (Objetiva), escreve no momento em que toda uma experiência social de séculos parece ruir.
Num texto fronteiriço, entre a crônica, o conto e o ensaio, alternado entre lembranças de um Brasil da juventude e do presente, Ronaldo experimenta em A arte de torrar café possibilidades para se analisar o Brasil atual. “Há 50 anos, caminho pelo Recife, me extasio, morro de tristeza, cheiro becos, fuço o lixo com os cães.” O autor passa pela violência que atravessa a sociedade há gerações, em referências ao campo de concentração das secas no Ceará, as atuais levas de imigrantes que percorrem toda a Europa, até as manifestações de resistência da cultura popular, como o maracatu e os cantos de religiões de matriz africana. É marcante a leitura do capítulo Sob camadas de esquecimento, em que relata um diálogo com uma paciente terminal, após ouvi-la cantar. Ao conversarem, ela afirmava ser um canto evangélico, logo percebido por Ronaldo como um mascaramento da verdadeira origem daquela música: uma homenagem aos orixás. “– A senhora é filha de Xangô. Ela ri satisfeita. – E da velha Nanã.”
O autor de Galileia (2008) e Dora sem véu (2018), seu último romance, concentra-se, sobretudo, na elaboração de imagens das tradições populares do país. Tradições que convivem no livro com reflexões sobre Guimarães Rosa, impressões sobre a brutalização da sociedade brasileira, de lembranças da infância vivida no Crato e as experiências enquanto médico no Recife.
Também se recorda sobre a revolução sexual vivida durante a ditadura civil-militar e se espanta com a tranquilidade, avesso da geração dos pais, com que se deitava na cama com a amiga Paula para apenas conversar. Em um tempo de intensas mudanças nos costumes, é marcante a resposta de Ronaldo ao ser questionado pela amiga sobre o futuro de Pedro Rulfo, companheiro em situação de clandestinidade. Responde que desde criança sonha com um lugar afastado, uma espécie de paraíso isolado e protegido até mesmo da bomba-atômica, referindo-se à fazenda onde crescera, em Inhamuns, no Ceará.
Essa resposta revela, aos leitores de Ronaldo, certa compreensão do tempo que atravessa toda sua obra. Uma compreensão organizada entre o trágico e a inocência de um tempo perdido. Operam juntas sem se anularem, cuja marca fundamental é o peso dos antepassados. Reler sua obra permite ver tal marca de personagens presos a um atavismo que se constrói lenta e tensamente. O mesmo passado violento e doloroso, torna-se, em outros momentos, chave de redenção e possibilidade, como na passagem citada. Quando se recorda dos blocos de carnaval e da cultura popular dos baques de maracatu, diz justamente de um passado transformado em presença, não violento e doloroso, mas carregado de promessa. “Em 1938, Mário de Andrade enviou uma equipe a Pernambuco e à Paraíba para registrar cantos, danças e rituais que ele considerava em extinção. Quase 80 anos depois, percebemos o quanto caboclinhos e maracatus se multiplicaram, provando a capacidade de resistência e transformação das culturas populares, embora continuem convivendo com as mesmas ameaças identificadas pelo escritor: o preconceito, as intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origens indígena e africana.” Complementar a essa compreensão do tempo, a marca trágica do escritor surge numa outra força extraída do passado. Ao invés da presença, uma ausência que torna texto, história e personagens temerosos. Não compreendem suas vidas porque o passado é turvo demais.
Aqui os leitores de Galileia, dos contos de Livro dos homens (2005), ou de Dora sem véu irão se lembrar de como esse passado se abate sobre os personagens, carregados de referências ao Antigo Testamento, a poesia norte-americana e as mitologias sertanejas. São personagens que se esforçam na fuga de seus desígnios. Impedidos, são atraídos por eles e não compreendem, até que descubramos os motivos de seu mal-estar. Assim age Cirilo, personagem do romance Estive lá fora (2012). Teme repetir a história malfadada do tio afogado no Rio Jaguaribe. Ou o sofrimento da socióloga Francisca com a missão legada por seu pai, em Dora sem véu, de encontrar na romaria de Juazeiro sua avó desaparecida há décadas. Uma narrativa vertiginosa até a apoteose final, como no delírio ao fim de Galileia, cujo palco trágico é o mesmo sertão dos Inhamuns recordado como paraíso terrestre por Ronaldo, onde nem mesmo a bomba-atômica alcançaria.
Através de A arte de torrar café, tomamos conhecimento de uma camada mais interior e complexa de sua obra. Diversos temas e referências já estavam presentes, diluídos ou explícitos, ao longo de seus outros livros. Positivamente, o autor confunde a nós leitores. Questionamos a origem das asserções e temas, se de fato através dos personagens ou das experiências do escritor. Face de uma mesma moeda? Experiência, observação e imaginação, diria William Faulkner.
A essa inquietação, o autor nos dá a pista. Optou por iniciar seu livro com um texto sobre a tensão e angústia de finalizar suas histórias. “Nenhum movimento é mais complexo que o de finalizar. Nele estão contidos o desapego e a separação, o sentimento de perda e morte.”
Em trecho que aparece em Dora sem véu, ele compara o ofício do escritor com as extintas torradeiras de café, cuja exímia técnica buscava o ponto ideal da torrefação. É nesse ofício já extinto que o autor reflete sobre o narrador. As histórias não terminam porque sempre se pode contar mais uma e, assim, espera-se, o narrador as estende ao infinito. Até que, como ele próprio recorda, “o editor arranque os papéis inacabados de sua mão”.
No momento em que toda uma experiência social de séculos parece ruir, contar mais uma história escancara o conflito dos que desejam pôr fim à arte de narrar e viver. É que a ficção sempre expôs um dano originário das sociedades. Assim imaginamos os poetas, inimigos da República platônica, capazes de embaralhar o sentido de realidade ao sugerir novas formas de experimentar o sentido do mundo. Entre a verdade e a mentira há uma complexa teia chamada ficção. Viver e narrar estão intimamente ligados, e é essa lição lembrada por Ronaldo.
Ao questionar o lugar da ficção, o autor e nós descobrimos que seu lugar é exatamente o extemporâneo. Surge como excesso e exceção, a exemplo de Sherazade. Um excesso que se coloca contrário ao fim, mesmo que tudo já pareça ruína.
Ainda que atravesse altos e baixos em seus textos, fato comum a uma obra que aborda assuntos diversos, nele fala a sensibilidade de um observador afiado. É que, ao seguir Bandeira, sabemos como a crônica celebra e é perdoada por sua leviandade. A arte de torrar café é um olhar através do espelho, aprofunda a própria obra ficcional de Ronaldo ao expor os caminhos de sua criação.