Artigo Kropotkin 1 arte sobre foto de Gilberto Romeu Winter Wikimedia Commons DEZ.21

 

Indagada sobre o que andava fazendo para se entreter durante a pandemia, a célebre cantora e multiartista Patti Smith contou, numa entrevista publicada em 19 de junho do ano passado no jornal espanhol El País, que, entre outras coisas, estava às voltas com a leitura de Piotr Kropotkin (1842–1921), pois havia se interessado pelo anarquismo. Pouco antes, no dia 9 daquele mesmo mês, Patti publicara em seu perfil no Instagram (@thisispattismith) uma foto do livro The prince of evolution (2011), de Lee Alan Dugatkin. Na legenda, explicou que se tratava de uma obra de introdução ao pensamento do cientista e revolucionário russo, e apresentou detalhes de sua biografia: “Nascido na nobreza, Kropotkin tirou todos os mantos e passou a vida trabalhando e expondo os princípios científicos e as verdades do Apoio Mútuo. Quando palavras não foram suficientes, ele voltou-se para a ação; como um cientista ambiental e anarquista benevolente […]”, escreveu a cantora.

Figurando como um dos mais influentes nomes na história das lutas libertárias, Kropotkin vem pouco a pouco chamando a atenção de outros públicos, a despeito do constante apagamento das contribuições anarquistas ao pensamento político e científico. Ainda que seja difícil assegurar todas as razões por trás desse renovado interesse, seus livros voltam a circular, sobretudo como consequência do fortalecimento das experiências autonomistas e anarquistas no século XXI, da reavaliação de suas teses por historiadores/as e filósofos/as da ciência, dos recentes eventos e publicações motivados pelo centenário de sua morte (em fevereiro deste ano) e, principalmente, da enorme difusão de práticas de “apoio mútuo” no decorrer da pandemia de covid-19, como bem observou a escritora e historiadora Rebecca Solnit em sua coluna no The Guardian, em 14 de maio de 2020. [nota 1]

Em seu texto, a colunista lembrou que a ideia de “apoio mútuo” é uma referência direta a Kropotkin e sua obra Apoio mútuo: Um fator de evolução, publicada em 1902. Nela, o naturalista russo propôs uma releitura da teoria da evolução de Charles Darwin (1809–1882), defendendo que a “cooperação” é um fator tão ou mais determinante para a sobrevivência das espécies, e, portanto, deveria ser considerada como um princípio fundamental da evolução, ao invés de só olharmos para as práticas de “competição”.

Rebecca Solnit argumentou que em momentos de crises profundas é comum reaparecem clichês sobre a brutalidade da natureza humana. Dessa perspectiva, o melhor que se poderia esperar das pessoas em meio a uma pandemia seria a indiferença egoísta; na pior das hipóteses, elas se voltariam para a violência de todos contra todos. Mas, como ela destacou, diversos estudos demonstram que não é assim que a maioria das pessoas se comporta diante de grandes desastres coletivos, ainda que obviamente existam pessoas egoístas e destrutivas (e estas muitas vezes ocupam posições de poder, já que vivemos em sistemas políticos que recompensam esse tipo de personalidade e esses princípios).

Para tratar do crescimento das ações de apoio mútuo diante da pandemia global, Solnit elencou diversos atos e projetos descentralizados de solidariedade e reciprocidade, que, àquela altura, espalhavam-se por todos os lados como resposta à catástrofe viral e política. Se o que se via nos noticiários eram imagens sombrias de grupos anti-vacina em frenesi, oportunistas estocando álcool em gel para revender a preços exorbitantes ou mesmo pessoas armadas exigindo o fim do isolamento social, a escritora defendeu que as ações de apoio mútuo então em voga deveriam ser examinadas com atenção e tomadas como base para a construção de um futuro pós-capitalista. Afinal, por que deveríamos sonhar com o retorno a um mundo que já havia se transformado em um verdadeiro desastre bem antes da pandemia?


O LIVRO

Em um obituário em homenagem a Darwin, publicado em 1882 no jornal anarquista Le Révolté, Kropotkin celebrou a enorme importância da obra do naturalista britânico, propondo uma nova abordagem para a sua teoria da seleção natural e esboçando suas primeiras ideias sobre o apoio mútuo.

Exilado na Inglaterra por conta de suas posições políticas, Kropotkin escreveria seu livro Apoio mútuo: Um fator de evolução em resposta a um ensaio do biólogo e filósofo britânico Thomas Henry Huxley (1825–1895), publicado em 1888 no jornal The Nineteenth Century. Conhecido como “o buldogue de Darwin”, Huxley argumentou em seu texto que, na batalha pela sobrevivência, os mais fortes, os mais rápidos e os mais astuciosos acabariam vivendo para lutar outra vez. Contrapondo-se a essa “visão gladiatória” da história natural, Kropotkin publicou um conjunto de textos no mesmo jornal, organizando-os posteriormente como capítulos de Apoio mútuo.

O livro ganharia ampla repercussão internacional, sendo traduzido em 1906 na França, pela renomada editora Hachette, e na Espanha, pela F. Sempere, responsável pela publicação de outros títulos do autor. As traduções ao espanhol e ao francês acabaram influenciando também em sua circulação na América Latina. No Brasil, o livro foi saudado pelo escritor Lima Barreto (1881–1922) como uma obra excepcional, com força igual à empregada por Darwin em A origem das espécies (1859) para tratar da tese da luta.

A edição recém-publicada entre nós pela Biblioteca Terra Livre, com tradução de Waldyr Azevedo Jr., conta com os apêndices da edição russa de 1907, um prefácio de Kropotkin à edição inglesa de 1914, um artigo de Andrej Grubačić e David Graeber (escrito pouco antes da morte de Graeber, em setembro de 2020) e o obituário de Darwin publicado por Kropotkin em Le Révolté. Além de Apoio mútuo, a Biblioteca Terra Livre vem reunindo um conjunto de textos, artigos e cartas que serão publicados em breve na Coleção Kropotkin, em parceria com a Intermezzo Editorial.

Nascido em uma família da nobreza russa, aos 15 anos Kropotkin foi convidado a ingressar no corpo de pajens da corte do czar Nicolau I, mudando-se de Moscou para São Petersburgo. Nas viagens promovidas por sua escola, uma instituição voltada para a formação de uma pequena quantidade de jovens, em sua maioria filhos da realeza, ele realizou suas primeiras pesquisas científicas. Ao concluir a formação escolar, em 1862, Kropotkin decidiu não permanecer na corte, viajando para Sibéria para servir no Exército Russo. Ali, faria inúmeras observações sobre a formação geográfica e a vida animal durante cinco anos, até decidir abandonar definitivamente o serviço militar.

Artigo Kropotkin 2 arte sobre foto de DOMÍNIO PÚBLICO Wikimedia Commons DEZ.21


Logo no início de Apoio mútuo, Kropotkin argumenta que, em suas viagens à Sibéria e ao norte da Manchúria, não conseguiu encontrar a luta cruel pelos meios de subsistência entre animais da mesma espécie, característica dominante da luta pela sobrevivência e principal fator de evolução segundo os darwinistas. Mesmo que fosse difícil estimar a importância numérica relativa à competição ou à cooperação, ele estava bastante convicto de que os mais aptos seriam aqueles que se apoiam mutuamente, e não os que vivem em guerra. As espécies que abandonam a cooperação, voluntária ou involuntariamente, estariam assim fadadas ao declínio, enquanto as que se associam têm sempre maiores chances de sobrevivência e de evolução.

“Considerando os incontáveis fatos que podem ser apresentados para corroborar essa visão, podemos dizer com segurança que tanto o apoio mútuo quanto a luta de todos contra todos são leis da vida animal; mas, enquanto fator de evolução, o primeiro tem provavelmente uma importância muito maior, na medida em que favorece o desenvolvimento dos hábitos e características que asseguram a manutenção e a evolução da espécie, além de maior bem-estar e melhor qualidade de vida para o indivíduo com o menor dispêndio de energia”, afirma.

Influenciado pelas ideias revolucionárias dos autores russos que lia desde a adolescência, assim como pelas impressões que teve durante o período em que viveu na Sibéria, onde observou os hábitos e costumes dos camponeses e a forma como estes se organizavam para sobreviver, Kropotkin acabou optando por renunciar à vida aristocrática. Tomando contato com a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) em uma viagem realizada para Genebra, em 1872, decepcionou-se com as posições reformistas das lideranças locais que submetiam a luta dos trabalhadores aos interesses parlamentares, aderindo ao anarquismo. Preso na Rússia em 1874 por sua militância, Kropotkin conseguiria escapar dois anos depois, exilando-se por muitos anos na Inglaterra, onde desenvolveria um intenso trabalho como propagandista, escrevendo em jornais e panfletos, além de publicar os resultados de suas pesquisas em importantes revistas científicas.

Visto muitas vezes como um intelectual excêntrico, alguém que transferiu para a natureza suas próprias concepções políticas, Kropotkin na verdade foi o autor mais conhecido de um grupo de naturalistas russos que compartilhavam ideias bastante próximas. Ainda que esses pesquisadores fossem influenciados pelas ideias da seleção natural, eles rejeitavam a influência do “argumento aritmético” de Thomas Malthus (1766–1834) sobre as teorias da evolução de Darwin. Estudando o mundo animal nas vastidões desabitadas do norte da Ásia e do leste da Rússia, os participantes da escola evolucionista russa defenderam que a cooperação intraespecífica seria a principal estratégia de luta contra as condições adversas da natureza nesses locais.

Sob o impacto das leituras de Darwin, Kropotkin visitou ainda algumas regiões da Sibéria onde a vida animal parecia fervilhar, tal a sua abundância, e nem mesmo nelas encontrou um mundo de perpétua luta entre indivíduos semifamintos e sedentos do sangue uns dos outros, ainda que, como ele escreve, tivesse procurado ansiosamente por casos reais de luta e competição.

Na introdução de Apoio mútuo, Kropotkin relata que foi uma palestra feita em 1880 num Congresso de Naturalistas Russos pelo professor Kessler (1815–1881), um famoso zoólogo e na época reitor da Universidade de São Petesburgo, que lançou uma nova luz sobre a questão. Segundo Kessler, além da lei da competição mútua, existiria na natureza uma lei do apoio mútuo, considerada por ele como muito mais importante para o sucesso da luta pela vida. Tal hipótese pareceu tão correta e de uma importância tão grande que Kropotkin resolveu coletar material para desenvolvê-la melhor, já que Kessler a abordara de forma superficial e morreria logo em seguida.

Depois de analisar a importância do apoio mútuo entre várias classes de animais, Kropotkin sentiu-se obrigado a fazê-lo também em relação à evolução humana, opondo-se aos evolucionistas que, assim como Herbert Spencer (1820–1903), tomavam os povos “primitivos” como exemplo de que a guerra hobbesiana de todos contra todos seria a verdadeira lei da natureza. O próprio termo “sobrevivência do mais apto”, adotado por Darwin e amplamente explorado por seus seguidores, fora na verdade cunhado por Spencer para descrever a história da humanidade, estendendo o conjunto das leis da evolução biológica para suas consequências políticas. Profundamente influenciado pelas ideias de Malthus, Spencer defendeu que a competição entre indivíduos constituiria o princípio fundamental do progresso humano. Não à toa, Pierre Dardot e Christian Laval argumentam, em A nova razão do mundo (Boitempo), que Herbert Spencer é o ancestral do neoliberalismo.

Segundo Kropotkin, o próprio Darwin já tinha advertido que a concepção de luta pela sobrevivência como um fator de evolução, introduzida na ciência por ele e por Alfred Wallace (1823–1913), perderia seu significado filosófico se fosse utilizada apenas em seu sentido estrito, e não em um sentido amplo e metafórico, capaz de incluir a interdependência entre os seres. No entanto, Kropotkin observa que Darwin retoma a antiga influência malthusiana em um dos capítulos de A origem do homem (1871), argumentando sobre as supostas inconveniências de sustentar “os fracos de cabeça e de corpo” nas sociedades civilizadas.

Opondo-se aos inumeráveis seguidores de Darwin que reduziram a noção de luta pela sobrevivência a seus limites mais estreitos, elevando a luta impiedosa por vantagens pessoais à condição de um princípio biológico ao qual também os humanos deveriam se submeter, Kropotkin dedicou os capítulos de seu livro não só a um exame minucioso das práticas de apoio mútuo no mundo animal, mas também a uma investigação de suas ocorrências na história da humanidade, que, segundo ele, fora escrita quase inteiramente como “uma descrição dos modos e meios pelos quais a teocracia, o poder militar, a autocracia e, mais tarde, o domínio das classes mais ricas têm sido promovidos, estabelecidos e mantidos. As lutas entre essas forças compõem, na verdade, a substância da História”.

Uma ressalva que, segundo Kropotkin, seria possível de ser feita ao seu livro é que nele tanto os animais quanto os seres humanos aparecem de maneira muito favorável, enquanto “seus instintos antissociais e de autoafirmação” são apenas mencionados. Ainda assim, nunca negou a luta. Ele argumenta, por exemplo, que uma parte dos indivíduos fez o possível para demolir as instituições protetoras de apoio mútuo ao longo da história, sem nenhuma outra intenção além de aumentar a própria riqueza e os próprios poderes. Mas, diante de tantas afirmações de uma luta sanguinária, seria preciso mostrar a importância do apoio mútuo em oposição ao individualismo, que, segundo ele, seria uma característica moderna, produzida pela ideia de um Estado centralizado como único vínculo entre agregados frouxos de indivíduos.

“O resultado foi o triunfo completo, no direito, na ciência e na religião, da teoria segundo a qual os homens podem, e devem, buscar sua própria felicidade sem considerar as necessidades das outras pessoas. É a religião do dia, e duvidar de sua eficácia é ser um utopista perigoso. A ciência proclama em alto e bom som que a luta de cada um contra todos é o princípio essencial da natureza e das sociedades humanas também. A biologia atribui a essa luta a evolução progressiva do mundo animal. A história adota essa mesma linha de argumentação, e os economistas políticos, em sua ignorância ingênua, atribuem todo o progresso da indústria e da maquinaria modernas aos efeitos ‘maravilhosos’ do mesmo princípio. A própria religião do púlpito é uma religião de individualismo, levemente mitigada por relações mais ou menos caridosas com os vizinhos, principalmente aos domingos.”

Ainda que o livro seja escrito em uma linguagem que já não é a nossa, valendo-se de tipologias ultrapassadas e alguns vícios evolucionistas, há nessa investigação inquieta e fervorosa uma infinidade de exemplos impressionantes e conclusões geniais. E, a meu ver, um fator determinante contribui para amenizar o exagero naturalista tão comum à época: o fato de que Kropotkin estava mais preocupado em estabelecer, de maneira expositiva e comparativa, a importância do fator do apoio mútuo para a sociabilidade das espécies, reservando para pesquisas posteriores a tarefa de descobrir suas origens enquanto um instinto natural.

Na contramão das defesas neoliberais por mais individualismo e competitividade, a relevância política de Kropotkin está sendo redescoberta por novas gerações de movimentos sociais, que veem suas obras como importantes fontes de inspiração para a reconstrução de um planeta em ruínas. Afinal, como argumentam Andrej Grubačić e David Graeber no prefácio, para criar um novo mundo, só podemos começar redescobrindo o que sempre esteve bem diante de nossos olhos.


NOTAS

[nota 1] Em theguardian.com/world/2020/may/14/mutual-aid-coronavirus-pandemic-rebecca-solnit.