Resenha Urso Hippopx.com dezembro.21

 

O ataque acontece durante a caminhada nas montanhas entre vulcões inativos da península do Kamchatka, no extremo-leste russo. O urso leva um pedaço de sua mandíbula, e ela o golpeia, em defesa, com um machado de alpinista que trouxe consigo. Caída desorientada, vendo muito sangue sobre a neve, fica à espera de um socorro, solicitado por um rádio-telefone precário, com a ajuda de dois amigos que vinham mais atrás. O urso escapa ferido, mas resta a dúvida se vai voltar. Estão dados o cenário e o evento. O relato começa imediatamente após esse fatídico encontro que marca uma dobra em sua trajetória. A repercussão e o significado desse acontecimento ocuparão a escrita do livro. Seus sentidos são menos evidentes do que parecem.

Nastassja Martin tinha 29 anos quando se deu o episódio que narra em Escute as feras (tradução de Camila Boldrini e Daniel Lühmann) e estava em uma temporada de trabalho de campo hospedada por sua família do povo Even. Anos antes havia realizado uma pesquisa de doutorado com o povo Gwinch’in, no Alasca, que deu origem a seu primeiro livro, Les âmes sauvages (2016). Após essa primeira experiência etnográfica, Martin cruzou o estreito de Bering para saber o que se passava com os indígenas do outro lado e se, de alguma forma, os modos de vida e as dificuldades enfrentadas por esses povos se assemelhavam. Foi assim que conheceu os Even.

Os Even, anteriormente nômades pastores de renas, foram forçados a se sedentarizar e viram suas criações serem coletivizadas e reagrupadas em rebanhos não mais livres, através do sistema de kolkhoz, implantado pela União Soviética. Com a queda do regime em 1989, algumas famílias Even decidem retornar à floresta e reconquistar terras e modos de ser e estar no mundo, em um movimento análogo — mas não igual — ao que se passou e passa aqui no Brasil com povos e comunidades indígenas e tradicionais aqui. A volta à floresta permitiu reativar a comunicação com os espíritos animais, que se dá, dentre outros meios, através dos sonhos. É também um povo fortemente atingido pelas atuais mudanças climáticas, uma vez que o Ártico é a região mais impactada por esses fenômenos. Experimentam, portanto, uma atual e feroz metamorfose em curso de seus mundos.

Com os Even, Nástia, como era chamada por seus amigos, aprendeu sobre o significado de seus sonhos recorrentes com ursos quando estava em campo. Mesmo antes do ataque sofrido, as visões oníricas já mostravam sua relação íntima com o espírito do animal. Como diziam seus interlocutores ela era uma mathuka, palavra local para urso e que designa uma espécie de duplo do mesmo. Ao visitá-la no hospital em que ficou internada na Rússia logo após o incidente, Daria, sua mãe e interlocutora mais próxima, conta que já desconfiava que algo do tipo poderia acontecer quando de sua partida para uma caminhada nas montanhas.

Ainda que seja organizada através do tempo cronológico — e isso se reflete na divisão dos capítulos nomeados com as quatro estações do ano — a narrativa de Martin provoca incisões no correr do tempo. Em muitos momentos, como é comum em textos autobiográficos como este, a ordem dos acontecimentos é interrompida por pensamentos ou pela rememoração de eventos anteriores àqueles narrados, que se apresentam como fluxos da consciência, invadindo o texto em pausas dramáticas.

O período do outono, que corresponde à primeira parte do livro, começa com uma reconstituição dos momentos que se sucedem ao ataque do urso nas montanhas de Kamchatka, passando pela internação da autora e uma primeira cirurgia de reconstituição de seu maxilar em um hospital com ares soviéticos na cidade de Petropavlovsk. Na sequência, o inverno marca o retorno à França e a continuação do tratamento médico em Paris e Grenoble, sua cidade natal. Além de se deparar com as interpretações médicas e psicológicas sobre o impacto do evento em seu corpo e psiqué, nesse momento a autora revisita suas memórias de infância, encontrando nelas o sentido de sua escolha pela antropologia, a ciência que ambiguamente a fascinara e a fizera passar pela recente angústia de ver seu rosto desfigurado. Nessas páginas a autora narra também, com ironia e humor em muitas passagens, as disputas de saberes médicos entre Rússia e França, numa espécie de guerra fria que tem como palco a reconstituição de sua face e, em última instância, de sua identidade.

A chegada da primavera coincide com a alta médica e o retorno de Nastassja a Tvaian, o território de sua família Even, em uma viagem que parece ser também curativa: um reencontro com seu ofício e com o urso. É nesse momento em que ela elabora junto aos seus interlocutores de pesquisa os significados daquele encontro desde o ponto de vista dos habitantes da floresta. Para os Even, seu retorno com vida do episódio, algo extremamente improvável, faria dela uma miedka, termo que se refere “àquela que vive entre mundos”. Por ser marcada pelo urso, Nástia é necessariamente um ser liminar, enfeitiçado, que de um lado deve ser evitado e de outro deve ser respeitado por seus poderes xamânicos. A última parte do livro, finalmente, coincide com o verão, o trecho mais curto da obra, em que a narradora manifesta sua decisão de não mais dividir os diários, que escreveu durante o período que esteve entre os Even, em diários de campo — instrumentos supostamente objetivos da descrição antropológica — e diários íntimos — voltados a impressões subjetivas. É esse o momento também em que anuncia o início de sua escrita. No final voltamos, portanto, ao princípio do livro.

Dispara-se uma série de questões. O que fazer com o embate entre distintos saberes e modos de vida quando instalados em um corpo? Pode acontecer com a antropóloga o que ela acreditava ocorrer apenas com os outros? O ataque do urso é um incidente traumático aleatório ou signo de xamanismo? Seria possível escutar médicos e psicólogos e ao mesmo tempo escutar a fera? Não lhe é dado escolher entre uma alternativa e outra: ficar com a explicação de seu mundo de origem e descartar a dos Even seria pôr em questão seu trabalho como antropóloga; permanecer com o enquadramento Even, especialmente o de tradutora das intenções dos animais, que lhe confere Daria, implicaria assumir outras responsabilidades e abandonar de vez a antropologia. Relatando muitas das interações com seus amigos, em cenas que restituem finamente suas sensações, ela percebe que não há convergência entre os enquadramentos possíveis, e opta por não resolver o dilema, deixando em aberto a incerteza, e se instalando entre dois mundos.

Seguindo a tradição de antropólogos que se dedicam a escrever um “segundo livro” em paralelo a seus trabalhos acadêmicos — como é o caso do clássico Tristes trópicos (1955) de Claude Lévi-Strauss e de Paletó e eu: Memórias de meu pai indígena (2018) da antropóloga brasileira Aparecida Vilaça, apenas para dar alguns dentre os muitos exemplos possíveis — este pequeno mas não menos ousado trabalho nos faz lembrar e celebrar os elos, mais vivos do que nunca, que unem etnografia e literatura na tarefa de narrar o insuperável intervalo entre as palavras e as coisas.