Poeta dos palcos, Chacal foi capaz de atravessar uma pandemia sem o tablado, puramente seguindo o instinto de comunicar-se. Para isso, teve auxílio da pulsão criativa das suas performances via redes sociais. Virou a chave, acreditando que “a vida é curta pra ser pequena”, como respondera por e-mail. “Fiz minhas performances via instagram e facebook. Desenvolvi meu bestiário, parte do movimento em direção à poesia calada, uma poesia só de gestos e visagens”, ele diz.
O ponto de partida no suporte e modo de fazer da geração de 1970, especificamente da cena carioca da qual o escritor faz parte, era se aproveitar dos meios de massa, desde a publicidade, do pôster e do panfleto para criar. Apropriar-se da baixa definição, descartável e portátil, assim como um post na timeline do Instagram. “Mesmo com as diversas ameaças, do vírus a um governo genocida, neoliberal assassino, a gente encontra jeito de criar. Nesses anos pandêmicos, fica a impressão de que temos que aprimorar novas formas de comunicação. As lives, o home office. Comunicar sem se ver ou tocar ao vivo. Otimizar essa nova voz. A viagem do mimeógrafo e da poesia marginal são de muita valia em momentos de exceção”, explica. “Virar a chave”, como sugeriu para as viradas de sua vida, é algo sazonal para um autor que já foi de tudo: marginal, magistral, MC e outros bichos.
O palco, que hoje se encontra interditado, surgiu para Chacal em 1972, quando o poeta vai a Londres e assiste Allen Ginsberg performar O Uivo e outros poemas (de 1956). “Os homens de negócios são sérios/ Os produtores de cinema são sérios/ Todo mundo é sério menos eu”, sintetiza Ginsberg (em tradução de Claudio Willer). Faz-se importante salientar como a poesia naqueles tempos possuía um outro tipo prestígio social dentro da cultura e Ginsberg era um poeta público que, diferentemente da geração que o precedia, fazia-se de corpo presente em aparições públicas com astros do rock e de filmes. Esse tipo de papel público e corporificado do poeta é algo admirado e absorvido pela geração mimeógrafo.
Como discute Silviano Santiago em Uma literatura nos trópicos (1978), naquele momento a literatura estava muito movida por uma força de reversão dos parâmetros basilares acerca da arte e do seu cânone. Foi fundamental o papel de personificação do autor. No ensaio intitulado Uma literatura anfíbia (do livro O cosmopolitismo do pobre, de 2004) – batizado com adjetivo que define uma vida em terra e água compartilhada por criaturas como sapos e capivaras –, Santiago pensa as dualidades se produzir uma literatura nacional: “o nosso sistema literário se assemelha a um rio subterrâneo, que corre da fonte até a foz sem tocar nas margens que, no entanto, o conformam”.
A dessacralização e descentralização dos pilares que sustentam a ideia de bom gosto, boa arte e alta cultura. É claro, em algum momento posterior àqueles anos essa geração alcançou o patamar de cânone, muito em função da antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, lançada em 1976 e com edição recente no mercado pela Companhia das Letras. “Naquele momento dramático da vida no país, vomitamos em cima do governo militar e do rigor formal do concretismo e das formas fixas. Exercitamos o drible e o corpo. Pela quantidade de fanzines e saraus, vemos que aquilo proliferou”, escreve o autor.
Chacal traz para Brotou capivara (Zazie Edições), seu novo livro de poemas, observações que surgiram justamente na efemeridade de um post do Facebook, a plaquete de poemas dos nossos dias. Sobretudo a girafa, Coelho caolho e Animal manual são algumas das performances postadas, antes do livro ganhar materialidade. Com uma série de desenhos de Laura Erber, o livro investiga processos figurativos de voyeurismo desses animais anfíbios e uma espécie de “capivarização” do autor a olhos vistos, que serve de metáfora para própria vivência pandêmica:
fui ao jardim botânico e vi um casal de capivaras.
isso pode significar algo.
Em 2016, Patti Smith lança o livro O ano do macaco. Na obra, ela mostra o que foram suas experiências no ano do macaco no horóscopo chinês, os 365 dias carregados de lutos e da vitória da extrema direita nos Estados Unidos, através da eleição de Donald Trump. O ano do macaco é carregado de esperanças, esperteza e malícia. Chacal cria o seu “O ano da Capivara”, de um imaginário nacional próprio, com essas criaturas espertas, que se banham, procriam e convivem em meio ao entrelugar de caos urbano e da calmaria dos parques.
“Somos todos bichos. Com olhares e atividades diferentes. Gosto quando Deleuze diz que ‘o artista é um animal à espreita’”, pontua o escritor. O poeta de alcunha canina, que descobriu a potência da voz, corpo e poesia no palco através do uivo de Allen Ginsberg, quis utilizar seu novo livro para pensar os animais não apenas como criaturas de corpo, vísceras, órgãos. E, sim, para transfigurar a linguagem, este lugar árido, em como um processo de oxigenado. Como diria Manuel Bandeira, “minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem”.
Se nessa pandemia nossos olhares ficaram mais voltados pela janela de um apartamento que oscilava entre o silêncio sepulcral e o ruído das ambulâncias, Chacal observou as capivaras do Jardim Botânico, como criaturas alheias, bucólicas, sagazes e complexas. Alheias, mas não alienadas, são espertas, não se alimentam de palavras como o poeta, mas de sexo e capim. Esta existência provocativa é a própria contrapartida da geração mimeógrafo: não com a intenção de mudar o mundo ou a poesia, mas de existir no mundo e na poesia.
Em dois versos do Preço da passagem, envelope mimeografado de 1972, continham os dizeres: “bunda mole e dedo duro tanto treme quanto entrega” e “quem não tem cão, caça com cão. a caçada é que é o boi”. O que o poeta vem construindo no prisma de sua carreira é um bestiário da poesia nacional. Os bestiários são livros alegóricos, da sutileza do humor. É uma literatura descritiva do mundo animal, muitas vezes acompanhada de uma moral.
Cerca de uma década antes de Chacal estrear com sua bestialidade na poesia, nas artes visuais as narrativas brasileiras eram impactadas e moduladas por Lygia Clark, com sua série Bichos. Ainda que baseado em motivações de escolas estéticas distintas e praticamente antagônicas, Clark nos apresenta lições possíveis para ler a poesia animalesca do poeta carioca. “Um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma integração total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o Bicho não há passividade, nem sua nem dele”, explicava. Elas são estruturas instáveis, sem forma ideal. Numa outra medida, o poeta sempre faz questão de ressaltar que sua poesia é feita para ser completada pelo leitor, como uma deformidade que encontra sentido no outro. “A poesia marginal é cheia de reticências para o leitor completar. De risos furtivos escancarados”, diz Chacal.
O POETA E A CIDADE
Dentro das modificações sociais e econômicas da segunda metade do século passado, inclusive na cultura de massa e entretenimento, Chacal e o grupo Nuvem Cigana carregam em suas autorias e gestos a ideia de “poesia urbana”. Desde a paisagem construída na poesia, até a atuação na boêmia e na noite do Rio de Janeiro. A cidade indubitavelmente é o palco onde se desenrolam as performatividades dessa geração. Contudo, Brotou capivara narra um autor em paisagem verde, de olhar contemplativo e um pôr do sol de fundo. Longe de ser uma poesia rural ou escapista, Brotou é sobre a idiossincrasia do simulacro bucólico dos parques urbanos e seus habitantes.
“Eu só sei a cidade”, ele escreve. “Tive a sorte de nascer no Rio, em Copacabana, onde mar e floresta batem papo na esquina. O Brotou nasceu das minhas caminhadas no Jardim Botânico. As capivaras gostam desse caldo urbano. São plugadas na rede, influencers. Gostam de aparecer”, completa. Como Italo Calvino, Chacal é um poeta que acredita no conhecer as cidades como o conhecer a si mesmo. E o ato de ser viajante, em seus múltiplos sentidos, uma expansão de si.
(...) traga-me então a raiz do girassol, a folha da
maniçoba, o istmo da lagoa santa, a baba do camelo
cansado. como pagamento quero 100 ml
de óleo de faz-me-rir. tranquilidade é o que eu preciso
O flow da poesia, tão caro a este poeta melodioso, se desenrola inicialmente a partir da sonoridade da própria palavra capivara, que procede do termo tupi kapi'wara e significa “comedor de capim”. Deixar suave a diferença entre pessoas e bichos, entre gêneros, entre prosa e poesia, som e sentido. “Tudo é atravessado pelo humor, a leveza, mais que classificações fósseis, próprias da ciência e da academia. Na vida, tudo se imiscui. Estou pra você como o tatuí está pra areia”, comenta o poeta. A voz é o som, e toda a mistura de gestos, imagens, vivências, afetos. Em um dos poemas do livro, o autor pensa o fazer poético como o gesto de transcrever vozes. Ouvi-las, observá-las e tomar notas e lições sobre essas formas de vida.
profetas ouvem vozes
poetas as transcrevem
capivaras acham isso belo
Se enfrentamos um momento em que tudo é modificado por uma forma viral, que para muitos pode nem ser considerado um organismo vivo, o poeta retorna para as formas bestiais que lhe deram um nome dentro da poesia. Contudo, o retorno é um caminho pela estrada desconhecida: Chacal vira a chave de um mesmo motor, mas o chassi é sempre diferente. Como tem que ser. “A poesia está sempre se reescrevendo. Com outras mesmas palavras, com ritmos diversos. Às vezes versos, às vezes prosa. Gosto muito de uma turma. Mas gosto mais do poema do que dx poeta”, pontua no e-mail. Criar um bestiário. para Chacal, é se narrar.“Antes das capivaras, já performava meus bichos”, ele explica. Da poesia do uivo ao trabalho de compostagem da linguagem, e agora as capivaras mansas.“Talvez a poesia seja a arte de soltar os bichos”, conclui. “Uma vez passeando no museu do inconsciente, criado pela Dra. Nise da Silveira, um paciente do centro psiquiátrico me apontou uma beleza de escultura meio troncha e disse: ‘tirei isso lá de dentro de mim’. A poesia é isso”.