O escritor timorense Luís Cardoso Foto: Daniel Rocha / Divulgação

 

Uma tragédia moderna, narrada em voz feminina. Tecida em torno de um século de história colonial marcada por massacres sucessivos e tendo como pano de fundo um pequeno território asiático: Timor-Leste, antiga colônia portuguesa. 

Uma escrita escorreita, tocante. Oferecendo voz a uma mulher para transmitir sua história de contornos poéticos, a escorrer como um fio de água. Uma espécie de síntese da epopeia de seu povo no último século. 

No romance, a narradora está sentada numa “varanda virada ao avesso”, virada para dentro dela, como se aquele fosse uma espécie de não lugar, onde anoitece antes de tudo. Na varanda-universo, ouve grasnar um ganso mítico que somente existe no seu pensamento, como tantas coisas à sua volta, tal como escreve o autor. Ali, ela assiste o passar de vultos com latas vazias em busca de petróleo. A metáfora revela, de maneira incisiva, a visão crítica do autor sobre a passagem de um modo de vida susceptível de dar sustento a um povo e aquele tendo como eixo a exploração do “ouro negro”, conduzindo à dependência e a um simulacro de riqueza. A abóbora é, assim, leitmotiv utilizado pelo autor para desmistificar, ao longo de seu texto, a ilusão de uma ideia de progresso que se insinua entre populações e subverte o coração dos homens. 

O plantador de abóboras é um livro singular, escrito por um autor pouco conhecido entre nós: Luís Cardoso, timorense. Ganhador do Prêmio Oceanos de Literatura 2021. 

A obra é dividida em três partes. Cada parte denominada andante

Andante é a designação de um dos movimentos da partitura musical. Como se essa referência estivesse a solicitar-nos uma leitura sensível e atenta às entrelinhas da pauta, por entre as quais escorre uma música a acompanhar o fio da narrativa. É ao “som” desses três movimentos musicais que se desenrolam os episódios significativos da história de Timor-Leste, vividos por três gerações sucessivas da família da personagem principal que faz da varanda seu mundo fantástico. 

A narrativa é feita num português em que é possível sentir a respiração de uma outra língua, o tétum, idioma também oficial de Timor-Leste. Respiração que se insinua num texto conduzido com maestria, na dicção de um português que atravessou mares e sertões para se tornar também nossa pátria.

Conta o autor que a ideia do livro surgiu de uma viagem feita ao seu país com o escritor José Saramago, após anos de militância e exílio. Num lugar em meio a ruínas de guerras, o encontro inesperado com uma mulher discursando às montanhas, aparentemente louca. É quando ela, ao avistá-lo, entoa-lhe, durante várias horas, as histórias de uma saga eivada de episódios de horror e destruição provocados pela sequência de guerras vividas por Timor-Leste no século que passou. 

A personagem central do livro bem poderia lembrar a Blimunda, figura central do Memorial do convento, do escritor português. Aquela que entre delírio e discernimento é uma espécie de vidente cuja marca é a faculdade de decifrar o subconsciente das pessoas. 

A narradora de O plantador de abóboras é uma mulher de estranhos dons. Ela aguarda um noivo, da qual está separada há anos. Alguém que teria partido à procura de pessoas extraordinárias para acabar por ser “apenas uma extraordinária sombra”. Alusão sub-reptícia aos que seguem líderes ou governantes sem refletir. Enquanto isso, desfia o percurso de sua família, a partir do avô, um moçambicano negro, engajado na tropa portuguesa enviada a Timor para combater rebeldes que haviam se levantado contra o domínio português. É o primeiro andante do livro, situado no início do século XX, quando a sedição conhecida como de Manufahi, liderada por Boaventura da Costa Sottomayor, hoje considerado herói nacional timorense, é massacrada pelas forças lusas. Ressalta-se, nessa passagem, um dos belos momentos do livro: o encontro amoroso do moçambicano negro com a avó timorense da narradora.

No segundo andante, o cenário é a Segunda Guerra. O país é invadido pelos japoneses. O pai torna-se cultivador de café, mas a eclosão do conflito mundial traz-lhe consequências nefastas: a perda dos bens, a prisão, além de o obrigarem a matar o cavalo de estimação como prova de lealdade, numa espécie de simulacro de harakiri

O terceiro andante é a travessia de duas décadas de ocupação sangrenta de Timor pela Indonésia governada por militares. Período em que as mulheres foram especialmente maltratadas e vítimas de violações em massa pelas tropas do general Suharto, então apoiado pelos Estados Unidos e pela Austrália. Estima-se que cerca de 200 mil pessoas (aproximadamente um terço da população de Timor) foram mortas naquele período.

O livro é estruturado como uma tríade. Os três movimentos de andante à guisa de capítulos, encerrando os três episódios históricos marcantes da história do país, protagonizados por três gerações de uma família surgida da mestiçagem entre África e Oriente.

O plantador de abóboras não se caracteriza apenas por ter uma estrutura e um formato singulares. Sua linguagem refinada e poética, também tocam o leitor desde o primeiro andante.

Luís Cardoso foi durante muitos anos representante diplomático da resistência timorense, mas vive atualmente em Portugal. Confessa ter abdicado da política para exercer o ofício de escritor como profissão de fé. Certamente por ter encontrado nas veredas da Literatura o campo de batalha mais apropriado para seu talento enquanto singular testemunho de seu povo.