Olhar um diferente, olhar um outro: o sentido da visão sempre esteve em lugar de destaque nas reflexões do escritor e ensaísta inglês John Berger (1926–2017). Seu ensaio Por que olhar para os animais? — recém-publicado pela Fósforo em volume homônimo com outros ensaios, em tradução de Pedro Paulo Pimenta (USP) — é uma das mais conhecidas expressões desse interesse, dentro de sua obra. O volume, em óbvia consonância com o movimento do mercado editorial brasileiro de viabilizar textos com diversas perspectivas sobre os reinos vegetal e animal (reforçado pela Flip 2021), propõe um deslocamento de olhar que não se pauta pelo especismo que nos marca desde Descartes. Sugere outros modos de ver sobre um outro humano (daí encerrar o volume com o ensaio sobre o filósofo marxista Ernst Fischer). Além disso, é amostra da expressividade do autor por serem ensaios em forma de prosa e poema em versos, com textos que variam do tom ficcional ao não ficcional.
O livro discute o “teatro do olhar” (daí a abertura da “quarta parede” no ensaio que abre a obra) pela atenção ao espaço prenhe de significado que há entre — representado pela reflexão que ele faz, por exemplo, sobre a distância entre um fotograma e outro numa película. Mais do que apontar um caminho para o deslocamento de um olhar moderno em tempos-chave, expõe o desejo de valorizar um atrito subjetivo com fortes tintas coletivas, pois tem a ver com tempos de mudanças históricas/sociais. O ensaio-título é dos anos 1970 (o mais recente, de 2009), marco de ditaduras e de reconfigurações do capitalismo, enquanto os ensaios posteriores tanto confirmam a insistência do autor no assunto como atendem expectativas de um tempo como o que estamos. Épocas em que nossas relações com o mundo passaram a ser forçadas a se darem em outros termos, com a derrocada dos movimentos sindicais e do trabalhismo (representações de solidariedade/comunidade) e a ascensão da questão ambiental, por exemplo.
O que se encontra mais diretamente no livro é a abertura para uma sensibilidade visual àquilo que sempre esteve próximo fisicamente e passa a ser próximo apenas em fantasia, como nos filmes da Disney e na profusão de brinquedos com formato de animais. Impossível não imaginar o que Berger teria a dizer dos spas para animais ditos domésticos, cada vez mais presentes.
Para o olhar, a palavra de Berger visa exercitar os nervos. Com toadas antropológicas, esses ensaios falam sobre nossa atitude em relação ao outro — eminentemente o animal, mas também outro humano — e são construídos por um conjunto de recursos narrativos (parábola, poema, ensaios na forma tradicional) que apontam para a paralaxe, a diferença na posição de um objeto se visto de locais distintos. Duas pessoas observando, de pontos divergentes, algo muito distante, apontarão para lugares diferentes. Ler o livro é acompanhar Berger em diferentes formas de deslocar-se para perceber melhor o espaço onde construímos nossas formas de ser, notando que a posição em que situamos o outro é um lugar apenas aparente. Às vezes, Berger, cartógrafo de distâncias, parece indicar o que o poeta Francisco Alvim faz nesses versos antigos (a meu ver, os melhores exemplos de sua poética): “olho/no/ olho/ a luz do mundo só se ilumina/ quando soma tua visão e a minha”.