Sueli Carneiro costuma se referir ao livro Continuo preta: A vida de Sueli Carneiro como “a biografia da Bianca [Santana]”, e quem a conhece sabe que a afirmação se deve à recusa de Sueli por qualquer tipo de autoelogio. Ela nunca escreveria uma autobiografia.
Este texto da querida Bianca Santana, a jovem ousada que se propôs a compor uma biografia da monumental Sueli Carneiro, se beneficiou do arrojo e da coragem da biógrafa, mas o texto em si é tímido, embora muito bem articulado e absolutamente coerente com a vida da biografada.
Bianca parece ter optado por um caminho que deixasse Sueli numa posição confortável, pois todas sabemos que ela é uma pessoa discreta e que não pratica a evasão de privacidade. Aliás, Sueli sequer sabe lidar com os holofotes que têm sido acesos em sua direção nos anos mais recentes. A vida dela tem sentido na coletividade, a serviço da comunidade negra, e Bianca optou por este foco.
Entretanto, para compreender de maneira mais completa a estratégia narrativa escolhida pela biógrafa, devemos considerar que Sueli Carneiro, mesmo quando afirma nossa liberdade de escolha e de trabalho, nos orienta para o que ela quer que seja dito e feito, e a verdade, a verdade mesmo, é que a gente obedece, feliz da vida por reconhecer nela, a filha de Ogum, canceriana e enxadrista, a autoridade ética para dizer o que, quando e como devemos fazer as coisas.
O livro é estruturado em quatro partes, a saber: Escavação, Movimento, Disputa e Centralidade, além de prólogo e epílogo. Cada seção tem capítulos curtos, às vezes muito curtos, e que deixam um gosto de querer mais. Não só porque nos tempos de hoje a gente se acostumou ao desfile da intimidade das pessoas pelas telas das redes sociais, mas também pelo interesse mais nobre em conhecer a humanidade de nossos ícones, porque queremos acessar a engrenagem dos paradoxos que os constituiu e compreender como se fizeram gente, antes da persona que tanto admiramos.
Nas duas primeiras partes, Escavação e Movimento, temos algum acesso às nuances mais humanas de Sueli, sua relação com a família em particular, quando sua ternura se revela e até se escancara na relação de amor profundo com o pai, um ferroviário. A mim tocou muito porque, como Milton Nascimento, o cantor preferido de Sueli (e também o meu), amo trens e ferrovias que emprestaram as condições econômicas para que famílias negras como a dela vivessem com dignidade, sem esquecer que também ocultam corpos negros soterrados sob os trilhos pelas montanhas dinamitadas para a construção de trechos das linhas férreas por todo o país.
O jovem negro herói, trabalhador, o redentor da família, o grande provedor representado pelo pai José Horácio, não existe mais. Os jovens negros de hoje são deprimidos, achatados, desprovidos de forças para a reação diante do projeto genocida, ardilosamente arquitetado para dizimar a juventude negra e seus sonhos. Por isso, mesmo tendo construído uma organização portentosa de mulheres negras, Sueli nunca descuidou da proteção à vida dos homens negros jovens.
Ao nos depararmos com a “forja da intelectualidade” adotada por nossa heroína como escudo à inferiorização socioeconômica ou à discriminação racial, reconhecemos a educação como caminho de superação abraçado por inúmeras pessoas negras.
Alguns fatos da vida da menina e adolescente negra Sueli nos oferecem elementos para compreender suas principais bandeiras de luta que passaram antes por seu corpo negro, aquilo que Ricardo Aleixo, um filho de Ogum como ela, chamou de “produção de um lugar de existência para a gente mesma”. Ou o que Vilma Reis vaticinou no adeus a Luiza Bairros, ela que, como Sueli e toda sua geração de militantes negros, inventou lugares para que nós, as pessoas negras mais jovens, pudéssemos existir no Brasil.
No capítulo 20, Movimento Negro, uma torrente de memórias me tomou, a mais divertida se deu numa das minhas visitas anuais a São Paulo, quando colava em Sueli e a acompanhava em seu trabalho externo ao Geledés (geledes.org.br). Tudo me interessava, menos as reuniões do Alafiá, que ajuntavam gente velha e chata (desculpem, eu tinha 20 anos), militante, heterossexual e cervejeira. Mesmo assim, Sueli e suas amigas conjecturaram de me apresentar para um cara que elas achavam “sob medida” para mim, o quarto cavaleiro do apocalipse, Vanderlei José Maria. Eu olhava para as mulheres que tramavam a coisa e pensava: mas sou tão lésbica, será que elas não perceberam?
Eis que Sueli me convidou para assistir uma palestra do sujeito e alfinetou dizendo que não daria certo mesmo, porque ao saber minha idade, ele teria me chamado de ninfeta. Seguro que a intenção dela era me provocar e conseguir efeito contrário, como é sua prática até hoje. Chegado o dia fatídico, quando Vanderlei terminou o trabalho, me dirigi a ele e, antes mesmo de cumprimentá-lo, disse: “ninfeta é a sua avó”. Depois de me vingar, estendi a mão e me apresentei.
Os silêncios, os interditos da família Carneiro, habilmente desenhados na arqueologia feita por Bianca Santana, me fizeram pensar sobre os silêncios de Sueli que acompanho há décadas, sobre a escuta atenta que ela faz da gente, de nossas dores e devaneios, talvez para auscultar o que não está sendo palavreado.
Trinta e cinco anos se passaram desde que Sueli Carneiro me acolheu em São Paulo, a mim, que vim de uma terra sem mar, ela continua oferecendo o céu para pescar estrelas.