Vento vadio é a mais completa antologia de Antônio Maria (1921–1964) publicada até o momento. Resultado de pesquisa minuciosa de Guilherme Tauil, organizador do volume e autor do esclarecedor estudo introdutório, traz dezenas de crônicas aparecidas inicialmente em jornais e revistas, a maioria inédita em livro. É uma oportunidade imperdível para o leitor atual entrar em contato com a obra do cronista que soube, como poucos, retratar a época áurea do Rio de Janeiro nos anos de 1940 a 1960, bem como do Recife antigo da sua infância de menino de família de senhores de engenho.
Figura multifacetada de escritor, jornalista e compositor de obras marcantes da canção popular brasileira (para falar apenas de suas atividades mais relevantes), Maria acaba por traçar um inusitado e fascinante perfil autobiográfico — “não sei fazer outra coisa que não seja falar de mim”, diz. Mas o mergulho interior acaba por desenhar um amplo painel de vivências cotidianas no qual a transcendência é via de acesso à compreensão de percepções e fatos diários. Tudo isso de uma perspectiva intimista que o humor e a melancolia revestem de uma feição muito especial.
A expressiva variedade de temas — o amor, a morte, a infância, a mulher, a arte, a natureza, a cidade, o carnaval, a ressaca etílica, dentre inúmeros outros — converge, lidas as crônicas em conjunto, para a figura singular que é Antônio Maria se comparado a seus pares, a exemplo de Rubem Braga e Dorival Caymmi, amigos a quem muito admirava. Do Recife a Fortaleza, de Salvador ao Rio de Janeiro e a São Paulo, sem falar das cidades que visitou no exterior, o périplo é vasto e a curiosidade em desvendar os enigmas que esses lugares vão propondo é imensa. Sua visão passa ao largo dos estereótipos costumeiros, pois o cronista se serve de sua aguda sensibilidade para penetrar no “nada, suas causas e consequências”, num movimento muitas vezes iluminador, que desperta viva empatia em quem lê.
O convívio com personalidades artísticas da época no seu dia a dia se distancia de qualquer postura meramente celebratória ou indulgente e se traduz por uma ética da amizade atravessada, decerto, pela boemia como forma simultânea de vida e de arte: Ary Barroso, Aracy de Almeida, Dolores Duran, Paulo Soledade, Vinicius de Moraes, Fernando Lobo, Cícero Dias, Di Cavalcanti, para falar apenas de alguns nomes, circulam pela “sala de visitas de nossa casa interior” que são as crônicas, nas quais autor e leitor intercambiam experiências ao modo de narradores benjaminianos, e fazem desse encontro uma modalidade sem igual de comunicação e socialização.
Não é de estranhar, portanto, o apego do cronista à reminiscência — “escravo de lembranças antigas” é como se identifica ao lembrar da infância passada nos engenhos da família em Pernambuco e nas ruas do Recife. São altos momentos de lirismo em que o filho da elite canavieira decadente, Antônio Maria de Albuquerque Araújo Ferreira de Moraes, se desveste do longo sobrenome ilustre para voltar a ser o menino que foi — “todas as coisas antigas foram boas para mim”, confessa. Há momentos tocantes pela simplicidade e delicadeza ao se falar do Carnaval antigo, da casa na Rua da União (Centro do Recife), dos banhos de mar de manhãzinha com toda a família, do menino de engenho com seu carneiro, das cheias vistas da casa-grande. “Vem-se da infância como de uma pátria” e a “maturidade é um exílio”.
A afirmação parece definir o lugar de fala do cronista — ou melhor, seu deslocamento — fiel ao sentido da crônica como forma de exercício do tempo que passa e traz novas possibilidades de imergir no presente do passado: uma dobra que vai e volta, sempre mesma e outra. Por isso o cronista da noite, frequentador das elegantes boates cariocas dos anos 1950, mas também de bares comuns, não contradiz o “menino antigo”, para usar a expressão cunhada por Drummond. Antes faz deles, menino e homem maduro, figuras reversíveis no mundo da linguagem, personagens que encontraram enfim um autor capaz de lhes dar vida no papel.
A crônica é, para Maria, uma variante da conversa à mesa de um bar, a “ressonância interior” do tempo que “acontece e se gasta nas palavras ouvidas em volta”. O cronista tem, pois, a função de aparelho registrador que faz da interlocução matéria textual o seu maior compromisso, por meio do espaço de participação que faculta cotidianamente ao leitor, tornado também personagem.
Não é difícil entender por que Antônio Maria se reconhece, num de seus textos, “cada vez mais democrata, mais antifascista”, ao falar de si em momento crítico da situação política do país, no início dos anos de 1960. Ou, então, ao lembrar do convite de Augusto Frederico Schmidt para que fizesse parte da Campanha Nacional Contra a Burrice, no final dos anos de 1950 e, diga-se de passagem, ainda hoje tão necessária. As crônicas que agora temos em mãos, escritas por um autor de rara sensibilidade e inteligência, são a melhor prova de que a campanha continua e está aberta à nossa participação.