Resenha Regina José Galindo Divulgação out.21

 

 

Na Guatemala, um homem destrói o rosto de sua esposa com ácido e com uma faca. É preso. A mulher passa por uma série de cirurgias de recomposição facial e por um longo período de acompanhamento psicológico, até que, recuperada, conquista uma bolsa de estudos para ir à Espanha com o filho. Para recomeçar a vida, ela decide pagar a fiança e libertar o ex-companheiro da prisão. Conta-lhe que vai à Espanha. Ele manda matá-la antes que ela parta.

Anos depois, uma performer está em um salão de arte em Barcelona, de pé com os punhos cerrados, vestindo um vestido que outrora pertencera àquela mulher desfigurada e assassinada, que não pôde viajar. Trata-se de uma etapa da performance Presencia, que consistiu justamente em invocar a presença de mulheres assassinadas, por meio do uso de suas vestimentas, emprestadas pelas famílias. Segundo a artista, o próprio corpo, reteso, é sustentado energeticamente pela obsidiana (pedra vulcânica amplamente utilizada nas tradições maya para neutralizar energias ruins) que segura em uma das mãos e pelas sementes de milho que segura na outra, enquanto conta as histórias da dona do vestido, em um gesto de entrega de um território porvir.

Regina José Galindo (foto) é a artista que concebeu essa e outras muitas obras performáticas que surpreendem pelo quociente de aglutinação de elementos simbólicos, pelas quais ficou conhecida mundo afora, participando de eventos de grande envergadura, como a Documenta de Kassel (Alemanha) e as grandes bienais. Nascida na Guatemala em 1974, mestiça, a artista visual e poeta produziu, mais do que trabalhos individuais que se encerram em si próprios, um projeto abrangente estreitamente ligado à sua vivência no país que ficou 36 anos em guerra civil e tem uma das maiores taxas de feminicídio do mundo, superada apenas por El Salvador e Colômbia.

Sai pela Edições Flecha a compilação bilíngue de seus poemas, escritos entre 1999 e 2021, sob o sugestivo título de Eu não sou a Pizarnik. Com tradução de Julya Vasconcelos, a poeta é publicada no Brasil pela primeira vez, no esteio de um movimento editorial anticolonial que vem se impondo nos últimos anos e que, no caso brasileiro, passa por romper a barreira linguística com os demais países do continente.

Um dos poemas mais famosos da poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936–1972) começa com o verso Simplemente no soy de este mundo…, que deixa ver sua relação melancólica com a palavra e com o fazer literário. Regina José Galindo, por sua vez, em um verso da edição brasileira, diz: “o mundo mordeu meu coração/e me contagiou com sua raiva”, passando ao largo do alheamento estetizado para simbolizar a consciência crua do caráter brutal da violência de Estado e da necropolítica no sul global.

Para Judith Butler, “a melancolia é uma rebelião que foi sufocada”. Nesse sentido, os poemas de Galindo são a inalação desesperada, a força contrária ao sufocamento, uma explosão rebelde. Enquanto Pizarnik, no mesmo poema, versa não ter medo de morrer, Galindo procura a sobrevida ao restaurar uma legibilidade extraviada, reterritorializando escrituras e imagens em seus poemas. Aqui, a poeta recupera a palavra (e o ar) por meio de um afeto ativo: a raiva, que inclusive nomeia uma das seções do livro, dividido em cinco partes: Rastros, Raiva, Torrente, Chorar por amor é a desculpa e Granadas.

Importante pontuar que, nesse caso, se afirmar no mundo não implica em uma adesão acrítica ao presente enquanto atualidade. A presença plena, tanto na obra performática quanto na poética, não significa afirmação. Ao contrário, a poeta mantém o olhar voltado para as sombras do presente, interagindo com e ativando elementos fora de foco na sociedade do espetáculo — suas telas, seus neons —, encarnando o sujeito contemporâneo de seu tempo que Agamben vê no poeta que lucidamente diz: “Minha era, minha fera”.

Rastros trata do fazer poético da autora e brinda a leitora com imagens coerentes com seu fazer performático, na medida em que insiste na corpografia em íntima relação com a paisagem e com a vida social da Guatemala: as ilhas, o mar, os rios revoltos, a religião, as bombas e a morte desembocam no papel em que Galindo escreve seus poemas, único recibo de que ainda está viva.

A Guerra da Guatemala, que começou com um golpe de Estado promovido pela CIA em 1960, com programa claro de desestabilização do país para barrar a tentativa de realizar a reforma agrária, estendeu-se até 1996, deixando cerca de 150 mil mortos e 40 mil desaparecidos. O golpe foi fomentado por empresas norte-americanas, principalmente pela United Fruit Company, que comercializava frutas tropicais nos Estados Unidos e na Europa. Segundo dados da Comissão de Esclarecimento Histórico, as forças governamentais foram responsáveis por 93% da violência do conflito e os grupos guerrilheiros por 3%.

Diante desses dados, notamos que Galindo viveu a maior parte de sua vida em situação de terrorismo de Estado. Sua palavra escrita encarna o peso histórico desse massacre de elementos tão próprios de Nuestra América. Em seus poemas, não existem redenção, placas, legendas, nem trilhas; apenas rastros, que exigem um pouco mais do leitor que ainda venha a procurar a identidade latino-americana, o contato com o exótico, que trata o espanhol como um sotaque e, até, do que busca apenas o terror para, quase sadicamente, sentir-se mais seguro em sua poltrona — ele existe. As frutas coloridas são carniça devorada por urubus.

Nada fantástica, nada exótica. O eu-lírico se afirma em um dos momentos desta parte do livro “a mais comum/ entre as comuns”, rejeitando cumprir o papel de repositório de projeções imposto às mulheres e, mais ainda, às mulheres latinas, mestiças, racializadas, construindo assim um espaço comum — no sentido de comunidade — com outras mulheres comuns, como se diminuísse sua poesia para caber.

No poema que abre a seção Raiva, a poeta afirma ter recebido de herança da avó não uma boneca, nem joias, apenas rancores enrolados em um pano vermelho. Essa imagem arrebatadora faz ecoar Joë Bousquet (1897–1950): “Minha ferida nasceu antes de mim/eu nasci para encarná-la”,[nota 1] porque as feridas são políticas, não uma experiência individual. A raiva de Galindo vem de antes, cresce e se espalha, como uma ferida aberta, um rio revolto cujas margens são a mistura indissolúvel da masculinidade com o capitalismo e os dispositivos de violência e de controle do Estado, como no grito das marchas de mulheres: “el Estado opresor es un macho violador”. Às margens do rio-ferida, pode-se acrescentar o componente da língua do opressor como o desejo que sufoca, uma língua que nos fala — a nós, mulheres comuns — antes de nascermos. Mas é na raiva que a língua cresce com todo seu poder destruidor na poesia da guatemalteca, desfixando imagens pasteurizadas pelo capital, lembrando Walter Benjamin (1892–1940), quando diz que

O caráter destrutivo não vê nada de duradouro. Mas, por isso mesmo, vê caminhos por toda a parte. Mesmo onde os demais esbarram em muros ou montanhas, ele vê um caminho. Mas porque vê caminhos por toda a parte, também tem que abrir caminhos por toda a parte. Nem sempre com força brutal, às vezes, com força refinada. Como vê caminhos por toda a parte, ele próprio se encontra sempre numa encruzilhada. Nenhum momento pode saber o que trará o próximo. Transforma o existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas. [nota 2]

A poeta salvaguarda um afeto ativo em vez de um afeto paralisante. Mesmo a tristeza mais pungente não lhe tira a vontade de viver, vontade que se concretiza na palavra, na quase transubstanciação herege do seu corpo em árvore, em madeira, em lápis, em poema, como diz em um dos poemas. Acredita apenas nas aréolas de seus mamilos.

Os poemas de Torrente tratam da violência de gênero, da sexualidade colonizada e de seus desdobramentos cotidianos na vida de qualquer mulher comum. Aborda a monoparentalidade feminina, que acontece em números estratosféricos no país, não somente pelos homens mortos na ditadura de Efraín Ríos Montt (1926–2018) e durante toda a Guerra, mas também pelo abandono parental. Além disso, trata com crueza o estupro e, por isso mesmo, torna explícito quão envolvidas estão as instituições (políticas, jurídicas, policiais) na reprodução infinita da violência na esfera doméstica e na pública.

As drogas também são um tema. Elas não aparecem em tom celebratório, mas como rotas de fuga para os momentos de angústia insuportável, funcionando como artifício de sobrevida criativa em tempos de ódio e de melancolia, mas também como um lembrete de que a guerra às drogas fracassou — como empreendimento e como argumento.

Chorar por amor é a desculpa é um momento do livro que brilha pela ausência da manifestação romântica do amor. A poeta espreita, sonda, se bate contra esse sentimento, mas nunca alcança o gesto de entrega. Mesmo consciente do amor como artifício, chegando a ser considerado uma “desculpa”, a entrega parece ser mais honesta diante das drogas e da masturbação frente ao espelho. Sua linguagem crua e acessível, mas acurada, alcança um imaginário tão comum como pouco explorado na poesia: como conciliar o apaixonamento e sua típica perda de controle com a autossuficiência adquirida, o instinto de sobrevivência e de preservação da mulher latino-americana comum, desprotegida e empurrada para a morte?

Granadas encerra o livro com uma obstinação: seu país. Longe de qualquer eco patriótico nos termos uniformizadores — tão em voga nos dias de hoje —, os poemas explodem como uma granada em desejo de reterritorializar: “Eu me nego a pensar que este/ seja um país para homens”, diz um deles. Em um movimento de alternância entre “utopia” e “heterotopia”,[nota 3] a poeta esmiúça o presente obscuro, mas também constrói imagens de uma Guatemala pós-guerra, um país para as crianças brincarem, não para heróis. Nesse sentido, um dos poemas, que é endereçado ao ditador Ríos Montt, diz: “Para cada campo cultivado que tu queimares, nós semearemos cem sementes”.

Enquanto Pizarnik diz: Ya no sé hablar como todos, convidando os leitores a habitar a lua, neste livro, Galindo atira sua poesia em forma de granada, cujos estilhaços podem atingir a qualquer um.


NOTAS

[nota 1] Ver a revista Les cahiers du sud, n. 303 (1950): René Nelli, Joe Bousquet et son double; e Ferdinand Alquié, Joe Bousquet et la morale du langage (tradução minha).

[nota 2] Walter Benjamin, Documentos de cultura, documentos de barbárie: Escritos escolhidos. Seleção e apresentação Willi Bolle; tradução Celeste H.M. Ribeiro de Sousa (et al.). São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986, p.187-188.

[nota 3] Aqui, cabe a diferença que Michel Foucault pontua em As palavras e as coisas, entre “utopia” e “heterotopia”: “As utopias consolam: pois, se não têm um lugar real, desenvolvem-se num espaço maravilhoso e liso; desdobram cidades de amplas avenidas, jardins bens dispostos, comarcas fáceis, mesmo se seu acesso é quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida porque minam secretamente a linguagem, porque impedem nomear isto ou aquilo, porque rompem os nomes comuns ou os confundem, porque arruínam de antemão a ‘sintaxe’ e não a que constrói as frases — aquela menos evidente que faz ‘se manterem juntas’ (umas do outro lado ou diante de outras) frases. Por isso, as utopias permitem as fábulas e os discursos: encontram-se no gume reto da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias (como as que com tanta frequência se encontram em Borges) secam o propósito, detêm as palavras em si mesmas, desafiam a partir de sua raiz toda possibilidade de gramática; desatam os mitos e envolvem em esterilidade o lirismo das frases” (Michel Foucault, Las palavras y las cosas. Buenos Aires: Siglo XXI, 1998, p. 3. Tradução minha).


***


TRÊS POEMAS DE REGINA JOSÉ GALINDO

Tradução: Julya Vasconcelos
Do livro Eu não sou a Pizarnik (Edições Flecha)


Às viagens ao submundo
deve-se ir sozinha
com sapatos confortáveis
uma calcinha extra para o caso de emergências
e nenhuma mala.

Assegura-te, antes, de estar com os papéis em ordem
para poder ir embora quando quiseres
sem que teus demônios te impeçam.


*

Sou
sombra
da minha sombra

nada
nem ninguém
segue meus passos

invisível
intangível
impossível
irrespirável

ao longe
um cão adivinha minha presença
mas não late.


*


Abram os olhos para este novo arco-íris
abram as pernas para abraçar-se com elas
e procriar mais filhos que nascerão sem fome, sem medo.

Desliguem as televisões
desconectem a internet
deixem a poesia para tempos piores
e saiam às ruas respirando
dançando
bebendo
que a vida é muito curta
e a guerra
acabou.