Uma anotação editorial na penúltima página de Anos de chumbo e outros contos (Companhia das Letras), de Chico Buarque, afirma que situações e personagens do livro são “reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles”. O alerta é usual em obras de ficção nas quais o leitor pode ser levado a crer que o que se narra tem função autobiográfica ou documental, acentuando que ambos, situações e personagens, têm vida própria no universo literário e prescindem de fatores extratextuais para se manterem em pé. Ao contrário do esperado, no entanto, o alerta acaba despertando em quem lê certa desconfiança que leva ao desejo de buscar pistas daquilo que se quer evitar: traços do escritor e de suas vivências pessoais.
É claro que o leitor é livre para fazer as ilações que quiser, mas, na verdade, se for mais atento, perceberá que está apenas diante de mais um lance do jogo ficcional que o autor propõe desde o título do livro e do conto homônimo que o encerra. Neste, uma criança narra um mundo paralelo de combates imaginários com seus soldadinhos de chumbo ao mesmo tempo que vai percebendo o triângulo amoroso que envolve sua mãe, o pai torturador e o amante major que o chefia, ambos à serviço da ditadura militar nos tenebrosos anos 1970 — violência sexual e violência política são irmãs siamesas.
A natureza alusiva do texto e seus deslocamentos replicam situações de vida familiar e social em desagregação, como no conto inicial, Meu tio, que relata a prostituição da sobrinha pelo tio miliciano, consentida e incentivada pelos pais. Ao ser narrado em primeira pessoa pela jovem em tom de composição escolar, não sem certa frieza macabra, acentua o horror do fato desconcertante pela sua banalização. Em Os primos de Campos, “memória remota” da “primeira infância” do narrador, mais uma vez relações familiares são postas em xeque, dessa vez atravessadas por questões raciais e de abandono paterno. Mesmo em Cida — que trata de uma mulher em situação de rua com transtornos mentais que fica grávida e tem uma filha que, anos depois, o narrador encontra já adulta e com a mesma condição mental da mãe — a questão retorna e parece perpetuar-se sem saída, ou tendo como ponto de fuga o imaginário planeta Labosta, para onde mãe e filha alucinam voltar.
Longe do lugar-comum que o título sugere, Copacabana se escreve à maneira de José Agrippino de Paula, como uma mistura de Ava Gardner e Pablo Neruda, Walt Disney e Jorge Luis Borges e remete, de forma delirante, aos anos dourados do bairro, então Meca de figuras internacionais do mundo das letras e das artes, hoje reduzida a um título solitário numa página do livro. A fama é também objeto de outro conto, O passaporte, no qual são narradas as vicissitudes do “grande artista” — Chico Buarque? perguntará o leitor — prestes a embarcar para uma viagem internacional. Ao esquecer o cartão de embarque e o passaporte no banheiro, o viajante se verá lançado a peripécias, em muitos pontos escatológicas, até conseguir enfim embarcar para um final surpreendente.
Em Para Clarice Lispector, com candura, o autor retoma uma antiga entrevista com a escritora famosa e faz do encontro o estopim de uma paixão imaginária, em que pintura e literatura se entendem e se desentendem por meio da atenção à mão queimada de Clarice, então tornada um símbolo doloroso da arte de escrever. Mas é em O sítio que uma relação a dois é posta à prova efetivamente. O narrador e uma mulher, que conhecera há pouco, resolvem abandonar a cidade até que a “peste” esteja sob controle. Sob a guarda do caseiro sem o braço direito e com o rosto comido pela varíola, vivem experiências relaxantes da vida no campo, até que um acontecimento inesperado fecha qualquer possibilidade de outra vida, compartilhada.
Em todos os contos de seu livro de estreia no gênero, Chico Buarque reafirma sua maestria como escritor atento à dinâmica social contemporânea e às subjetividades então em conflito, colocando em cena, agora, principalmente jovens e crianças às voltas com as agruras do mundo adulto. Parece, assim, sugerir uma saída para os impasses atuais ou então sua impossível solução, dadas as condições históricas dos nossos impedimentos e dificuldades que teimam em persistir.
A arte do conto é uma arte refinada e difícil. Na literatura brasileira, de Machado de Assis a Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, de Guimarães Rosa a Clarice Lispector e Sérgio Sant’Anna, o gênero alcançou um altíssimo nível de realização artística. Pelas mãos das gerações mais recentes, essa tradição tem sofrido um esforço de atualização que Anos de chumbo e outros contos vem confirmar com o êxito esperado de um notável escritor.