Ana Paula Maia fev.19 Rodolfo.Buhrer

 

De cada quinhentos uma alma, novo livro da escritora e roteirista Ana Paula Maia, lembra pelo tema e montagem um road movie distópico. Na esteira de Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e ainda do romance A hora dos ruminantes (1966) de José J. Veiga (1915–1999), instaura uma parábola antitotalitária e antimilitarista, que o clima de sufoco da narrativa colore de tintas sombrias para melhor falar dos opressivos tempos atuais.

Uma epidemia assola um país não nomeado que pode ser o mundo inteiro, ampliando a dimensão do apocalipse em curso na narrativa. De início, animais começam a morrer, depois pessoas, doentes são encaminhados para campos de isolamento (na verdade campos de morte), vilarejos inteiros são incendiados por militares para barrar a contaminação, caminhões cheios de cadáveres transitam pelas estradas desertas com destino a crematórios e incineradores.

Caos, como nos tempos primordiais: “Caos é o primeiro deus a surgir no universo, a mais antiga consciência divina”, diz o narrador. Mas sem o sentido redentor que as inúmeras citações bíblicas do texto poderiam indicar. Esvaziadas de sentido pela repetitiva recorrência autoparódica na boca dos profetas de plantão, parecem ter acertado a profecia de fim de mundo e com isso já não dizem mais nada. Afinal, profetas perdem sua função quando tudo acaba e o fim encontra o começo.

Esse aparente paradoxo aflige o trio de protagonistas sempre em movimento, como se estivessem em busca de uma terra prometida à maneira dos velhos faroestes com os quais a narrativa se identifica ao desconstruí-los: Bronco Gil, um gigante de olho de vidro e matador de aluguel; Tomás, um ex-padre excomungado; Edgar Wilson, recolhedor de animais mortos e depois de cadáveres humanos, cujo nome vem de Edgar Allan Poe e seu William Wilson, confessa a escritora. São provenientes de livro anterior de Maia, Enterre seus mortos (2018), agora levados ao limite da exasperação e do horror.

No cenário tomado por catástrofes de toda ordem, onde até a estridente praga bíblica dos gafanhotos tem lugar e se reatualiza de modo contundente, resta aos personagens apenas o deslocamento sem outro objetivo senão o Matadouro do Milo, ponto de chegada da narrativa, emblemático desde o nome. O extermínio se dá como forma de sobrevida e divisão com o Senhor dos espólios de guerra — “De cada quinhentos uma alma; tanto dos homens como dos bois, dos jumentos e das ovelhas”. É a sem-saída à qual se negam os “homens de sangue”, como Tomás, para quem o caráter vem antes da fé e de qualquer possível remissão divina.

A possibilidade de mudança que leva os personagens a não saber mais onde estão — a “terra está se redimensionando”, diz Edgar Wilson — parece figurar, embora tenuemente, um outro mundo e uma nova vida na terra pós-catástrofe ou, mais fortemente, o final de tudo: “É como se a terra estivesse sendo engolida, devorada afoitamente, indo parar nos abismos de um deus, nas entranhas e onde tudo se originou”. Mais uma vez o fim encontra o começo, a serpente engole a própria cauda.

Parece legítimo supor que a morte das ovelhas, bem como a dos seres humanos apresentados no seu anonimato, seja um ato de purgação ou rito sacrificial fracassado. Realimenta, em vez de interromper, a cadeia de acontecimentos funestos que resulta na liquidação das premissas biológicas e dos laços sociais necessários para a manutenção da vida na Terra. Mesmo assim, Bronco Gil, Tomás e Edgar Wilson insistem em levar adiante a impossível tarefa que se impõem.

Apesar desses personagens insubmissos, a natureza circular da narrativa, num livro em que os homens dominam a ação o tempo todo, não prevê uma saída masculina para o impasse. Uma escapatória talvez possa ser encontrada no feminino, sugerida de passagem pelo único momento de respiro da narrativa — suspensão momentânea do horror — quando a menina sobrevivente ao incêndio de seu vilarejo é acolhida pela freira da igreja para onde Tomás e os outros a conduzem.

Escrito em linguagem sóbria e certeira, econômica na adjetivação, De cada quinhentos uma alma dá continuidade ao projeto literário de Ana Paula Maia, lúcido na escolha temática e com expressiva força linguística. Com sua obra, a autora vem se juntar a um ativo grupo de jovens escritoras e escritores brasileiros que têm levado adiante, na prosa e na poesia, o compromisso literário de testemunho artístico da nossa difícil atualidade.