Ana Flauzina credito.Raphael Herzog

 

 

Em uma crônica de 30 de janeiro de 1885, publicada na seção “Balas de Estalo” da Gazeta de Notícias, Machado de Assis (1839-1908) alerta que “as liberdades dependem tanto umas das outras, que o dia da morte de uma é a véspera da morte de outra”. Redigidas sob pseudônimo e publicadas no periódico carioca entre os anos de 1883 e 1886, as crônicas machadianas debruçavam-se sobre a vida no Rio de Janeiro, então capital do Império, abordando o dia a dia nas ruas da cidade e o aparente declínio das principais instituições do País.

Uma breve leitura desse conjunto de textos é suficiente para constatar a atualidade das questões jurídico-penais trabalhadas com humor e maestria pelo cronista. Afinal, como argumenta o penalista Nilo Batista em Machado de Assis, criminalista (Revan), o escritor discorreu com enorme argúcia sobre o sentido e a funcionalidade de certos recursos jurídicos. Machado nos é apresentado por Batista como um eminente criminalista, que, na contramão dos dogmas do cientificismo punitivista de sua época, desvendou os sentidos históricos de uma sociedade escravista e patriarcal, atuando na deslegitimação das penas do sistema punitivo. Transcendendo as fronteiras da literatura e da invenção estilística, o escritor nos legou uma “fonte inexaurível de informações surpreendentes e intuições desconcertantes sobre a formação social brasileira urbana”.

Desse modo, se concordamos com a asserção do cronista destacada anteriormente, precisamos questionar quantas liberdades foram mortas para que chegássemos ao atual estado de coisas no Brasil. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro, livro recém-reeditado pela Brado Negro, traz algumas respostas fundamentais que podem ajudar no desvelamento histórico de nossa barbárie cotidiana. Fruto da dissertação de mestrado em direito de Ana Luiza Pinheiro Flauzina (foto), defendida na Universidade de Brasília em 2006, sob orientação de Ela Wiecko Volkmer de Castilho, a obra busca pensar a realidade brasileira a partir do terreno das contradições jurídicas. Para tanto, elege a criminologia como ferramenta teórica, entendendo a questão criminal como campo estratégico para o debate das relações raciais no Brasil.

Antes de percorrermos as páginas desse trabalho fundamental, vale lembrar também que Machado de Assis foi contemporâneo do empreendimento teórico que consagrou o termo “criminologia” por meio da obra de Raffaele Garofalo, nome forte do positivismo criminológico europeu. O termo apareceria em uma crônica do escritor de 1896, poucos meses depois de Clóvis Beviláqua publicar o volume Criminologia e Direito, primeiro livro latino-americano a utilizar a expressão em seu título. Desde então, muitos discursos perigosistas foram despejados por essa ciência (de passado) colonial, tendo no positivismo um marco de sólida permanência histórica, como demonstra Ana Flauzina a partir de uma análise calcada nos pressupostos da criminologia crítica.

Detendo-se sobre a genealogia dos saberes/poderes criminológicos, sua pesquisa aponta para a necessidade de assumirmos — de uma vez por todas — o “racismo” como categoria substantiva na estruturação do sistema penal brasileiro, entendendo-o “como uma doutrina, uma ideologia ou um sistema sobre o qual se apoia um segmento populacional considerado superior, por causa de características fenotípicas ou culturais, a fim de conduzir e subjugar um outro, tido como inferior”.

A autora destaca ainda o caráter perverso e desumanizador do racismo, utilizado como parâmetro para distinção e catalogação de indivíduos: “Essa peculiaridade faz dele uma das justificativas mais recorrentes nos episódios de genocídio e em toda sorte de vilipêndios materiais e simbólicos que tenham por objetivo violar a integridade dos seres humanos”. Uma vez que o racismo se explicita de forma inegável nas abordagens policiais truculentas e nos encarceramentos e mortes que configuram estatísticas aterradoras, o sistema penal é percebido por ela como arena por excelência “da engenharia genocida brasileira”, que se manifesta através do braço armado do Estado para controlar e exterminar a população negra.

Com grande rigor analítico, profundo comprometimento ético e uma verve crítica admirável, Corpo negro caído no chão denuncia a existência de um projeto de Estado de caráter genocida no Brasil, dirigido contra a população negra e resguardado pela simbologia do mito da democracia racial. Daí a criminologia crítica figurar como um instrumental qualificado para entender o aparato de controle social do Estado brasileiro, sobretudo através da apropriação latino-americana efetuada por Raúl Zaffaroni para pensar a existência de sistemas penais de caráter genocida em nossa “região marginal”.

O SURGIMENTO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A primeira etapa da reforma penal que projetou a estratégia punitiva da modernidade se deu através do questionamento dos limites do “poder soberano”. Pautado pela necessidade de superar as formas como o Antigo Regime punia, o discurso iluminista condenou as práticas que visavam os corpos dos condenados, como no caso dos suplícios convertidos em espetáculos públicos. Inaugurou-se assim o direito penal do fato, lançando mão de um direito baseado em uma aritmética punitiva de fins utilitaristas. Com a mudança de paradigma levada a cabo pelo positivismo durante o século XIX, a criminologia viu-se alçada ao estatuto de ciência. Entrava em cena, por sua vez, o direito penal do autor, afastando-se do “delito” para dar destaque ao “criminoso”.

No entanto, se o projeto de controle penal moderno se bifurcaria numa aparente contradição entre escola clássica e escola positiva, Flauzina argumenta que as diferentes concepções não devem ser percebidas como contraditórias, e sim como complementares, tendo a “ideologia da defesa social” como ponto de interseção entre ambos os pensamentos criminológicos.

Na esteira dos movimentos emancipatórios que sacudiram o mundo nos anos 1950 e 1960, o labeling approach, também conhecido como teoria do interacionismo simbólico ou rotulação, ou ainda como paradigma da reação social, apareceria como um pensamento crítico importante para alterar os termos dos debates criminológicos. De acordo com seus autores, não seria possível interpretar o comportamento humano desvinculado das interações sociais que o atravessam, sendo inconcebível, portanto, pensar a noção de “crime” como realidade ontológica.

Rompendo com o paradigma etiológico gestado no interior do positivismo, o labeling preparou o caminho para que o sistema penal pudesse ser escrutinado, superando as perguntas que questionam as causalidades do delito para atentar para a funcionalidade do sistema. Apesar dos avanços inquestionáveis, a criminologia crítica surgiria como uma resposta ao caráter abstrato do paradigma da reação social, que parecia sugerir um jogo formal de interações recíprocas.

De base materialista, esses novos trabalhos sinalizaram para a confluência entre o sistema punitivo e a reprodução das estruturas de poder, remetendo a uma dimensão macrossociológica. Afinal, em sociedades de classes, a seletividade penal precisa ser entendida como marca por excelência da estrutura punitiva, uma vez que as estatísticas não representam a criminalidade realmente existente, mas apenas as características dos processos de criminalização.

O RACISMO COMO FUNDAMENTO DO EXTERMÍNIO

Com a mudança de rota operada pela criminologia crítica, foi possível estabelecer uma nova compreensão da atuação punitiva na América Latina. Como argumenta Flauzina, a dinâmica de liberar o continente dos excessos humanos inúteis aos projetos hegemônicos, movimentação visivelmente condicionada pelo racismo e vocacionada para o extermínio, contou com entusiasta participação dos sistemas penais da região.

Através da elaboração de um quadro simbólico refratário ao conhecimento da existência dos agrupamentos negro e indígena na América Latina, conformou-se um imaginário social que investe na eliminação destes povos, materializando-se em práticas efetivas de extermínio para as quais análises baseadas exclusivamente na categoria “classe” não dão conta. Ao investigar a apropriação simbólica da questão racial pelas elites latino-americanas, a autora chama a atenção para a peculiaridade do caso brasileiro, país que foi capaz de converter um “território da barbárie” em “paraíso terrestre do convívio entre as raças”.

Percorrendo as implicações da articulação entre racismo e sistema penal ao longo de nossa trajetória, a pesquisa se vale da periodização sugerida por Nilo Batista, que indica a existência de quatro sistemas penais na história do Brasil, a saber: o colonial-mercantilista, o imperial-escravista, o republicano-positivista e o contemporâneo, tratado pela autora como “neoliberal”. Atravessado por pressupostos racistas, marca do sistema penal brasileiro, o aparato neoliberal assumiria a tarefa do controle ostensivo dos corpos, pautando uma necessidade cada vez maior de exclusão social e eliminação física dos grupos que não se adaptam à agenda globalizante: seja através da perseguição àqueles que, empurrados para fora do mercado formal de trabalho a que já tinham pouco acesso, se lançam em atividades consideradas ilegais; seja através da falaciosa “guerra às drogas”; ou então por meio da lucrativa indústria do controle do crime e seus mercados de segurança privada. Nessa empreitada, nos diz a autora, “os meios de comunicação ocupam inegavelmente um papel de destaque. Muitos os consideram como uma verdadeira agência executiva do sistema penal, pronta a dar suporte às suas principais investidas”.

A partir da noção de “biopoder”, de Michel Foucault, Flauzina examina padrões de extermínio que se sofisticam ao longo da história, indicando que as bases de atuação do sistema penal não conseguiram se divorciar do passado colonial. Mesmo com todas as mudanças e avanços obtidos por meio da mobilização política, o terror infligido às comunidades negras nunca foi desativado. Segundo a autora, o principal pilar da dominação esteve e está estruturado na desarticulação comunitária, fomentando autofagia para produzir controle político. Por isso, ela defende que enfrentar o debate de gênero e sexualidade é outro ponto central para dar conta das inúmeras facetas do extermínio.

Uma das grandes contribuições do seu livro é oferecer uma leitura histórica e jurídica da categoria “genocídio”, argumentando que sua apropriação é incontestavelmente devida no que se refere às práticas levadas a cabo para a eliminação do contingente negro. Afinal, a forma como o sistema penal incide sobre os corpos está condicionada pela corporalidade negra, pela negação de sua humanidade. O que a autora sustenta, de maneira bastante convincente, é que mesmo quando voltada ao controle de corpos brancos, a movimentação do sistema penal está condicionada pela dinâmica racista: “Em outras palavras, o sistema penal é violento porque é racista, e se as consequências mais perversas desse casamento desastroso são inegavelmente sentidas pela população negra, também estão colocadas para os demais segmentos da sociedade em alguma medida”. Dessa forma, mais do que um esforço de convencimento, o conceito de genocídio é tomado como ponto de partida.

Atualmente professora da Faculdade de Educação da UFBA, Flauzina tem insistido em pontuar que a brutalidade da colonização nos tornou incapazes de pronunciar a dor quando esta atinge os corpos negros. Por isso, se em determinados momentos históricos a truculência do aparato repressivo se posiciona na direção de um número maior de corpos, como ocorreu na ditadura empresarial-militar de 1964, devemos rechaçar categoricamente todas as leituras que interpretem estes períodos como marcos singulares de celebração do horror.

Ainda que o sistema penal não seja o único aporte do empreendimento genocida do Estado brasileiro, ele é, sem dúvida, o caminho mais viável para a sua consolidação. Nesse sentido, o racismo não pode mais ser incorporado como simples jargão militante, mas deve ser encarado como substrato impreterível das análises políticas, uma vez que os corpos negros seguem figurando como meros personagens conceituais da seletividade penal, inclusive em produções da criminologia crítica.

Assumir o racismo como pressuposto de inteligibilidade do aparato de controle social é um caminho fundamental para respondermos como foi possível chegar até aqui; para compreendermos não só o autoritarismo militar em curso, mas também a gestão governamental da pandemia. É preciso termos a coragem de romper radicalmente com a leitura liberal da democracia e dos direitos humanos, admitindo que o tipo de democracia que se admitiu historicamente entre nós dependeu do racismo antinegro e anti-indígena para o seu funcionamento.

Por tudo isso, Nilo Batista estava certo ao apontar, no prefácio da primeira edição do livro, em 2008, que o trabalho de Flauzina daria início a uma produção acadêmica que seria frutuosa não apenas para a criminologia crítica, mas para a militância política de maneira geral. Trata-se de uma pesquisa a um só tempo vanguardista e ancestral, produzida, como faz questão de demarcar a autora, a partir do acúmulo de homens e mulheres negros que lhe antecederam, e construída em diálogo com a militância negra, a quem Flauzina agradece “por salvar vidas”, por ter salvado a sua e de tantas outras pessoas que lhe acompanham.

Com Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro, Ana Luiza Pinheiro Flauzina amplifica os esforços dos movimentos negros em pautar a questão do genocídio como agenda decisiva, dando sequência a uma importante tradição do pensamento crítico: a tradição de mestres e mestras na periferia do capitalismo. Está posta, portanto, a necessidade de revermos não só o aparato repressivo brasileiro, mas os próprios termos do pacto social a que ele dá sustentação. Uma tarefa absolutamente urgente.