Resenha DeniseDuhamel Divulgacao

 

Talvez seja estranho vislumbrar uma boneca como matéria principal de uma série de poemas, mas é exatamente esse o caso de Mundo Barbie, tradução de Kinky, livro da poeta estadunidense Denise Duhamel lançado em 1997. Publicado em português neste ano pelas Edições Jabuticaba, tendo sido vertido a seis mãos, por Miriam Adelman, Julia Raiz e Emanuela Siqueira, é dividido em quatro partes, chamadas Batom, Blush em pó, Rímel e Sombra de olho. Esses títulos já chamam a atenção para o tópico da manipulação da aparência que a maquiagem efetua sobre o rosto de uma pessoa. Ao longo dessas seções, a poesia cômica de Duhamel nos estimula a repensar modelos de apresentação e conduta não apenas das mulheres, mas de toda a sociedade sob influência da cultura estadunidense.

Hoje, Barbie é reconhecida como uma boneca que, apesar de constantes reelaborações e tentativas de diversificação de sua aparência, reflete, acima de tudo, um ideal associado à mulher branca e loira dos Estados Unidos. No livro, essa projeção se torna, na verdade, um meio para refletirmos acerca da dominação que dá às mulheres, nas palavras de Monique Wittig, um “corpo cheio de a prioris”. A partir dessa ideia, a Barbie construída e reconstruída por Duhamel traz consigo consequências de premissas sobre seu corpo quando tenta viver situações cotidianas na vida de uma mulher.

Esse processo de reconfiguração da boneca começa forte na primeira composição do volume, Barbie com necessidades especiais, que alude ao hábito infantil de arrancar partes de seu corpo. Essa atividade é, por exemplo, exercida por um menino de Chicago que pegou o braço da Barbie “para usar como palito de dente” e também por uma menina no estado de Montana que cortou o cabelo da boneca, pensando que cresceria de novo. Aos poucos, de brinquedo, ela se transforma em um modelo de mulher com uma vida mais ineficiente do que poderia se esperar.

Em paralelo, poemas como Barbie oriental apontam como a tênue fronteira entre boneca e gueixa na cultura japonesa evidencia a impossibilidade de contemplá-las fora do espectro da fantasia: “O Ken Branco está deitado de bruços/ enquanto uma Barbie Oriental caminha sobre suas costas./ Ou é uma mulher de verdade pisando no Ken?/ Ou uma Barbie Oriental pisando num homem de verdade?” Em vez de vermos uma semelhança da boneca com a dançarina japonesa que a torne mais humana, a gueixa parece se tornar uma boneca. Essa indistinção de brinquedo e ser humano faz com que considerar a convivência de Barbie em sociedade, como uma mulher de fato, seja um absurdo.

Entre poemas que exploram a possibilidade de humanizar a boneca, essa questão se mantém conforme sua materialidade. Um exemplo disso é Barbie apocalíptica, em que ela e Ken, descartados num canto, “correram um para os braços do outro” diante de “sirenes hediondas” de uma catástrofe nuclear. Apesar do gesto digno de um roteiro romântico, os bonecos ficam “se abraçando e se alisando, mesmo sem óvulos ou esperma,/ útero ou pênis” em um abrigo nuclear enquanto os humanos morrem. A contradição do desejo sexual, próprio dos seres humanos, em meio à derrocada da humanidade expõe mais uma vez a impossibilidade de Barbie ser uma mulher de fato. Esse tópico de sua controversa humanização começa a se tornar mais proeminente nas outras partes do volume. Por poemas como Barbie anticristo, vemos que a boneca pode até mesmo não ter seus pés — em formato de salto alto — descalços como os de Jesus, pois, é claro, ela cairia ao tentar andar sem o calçado para o qual seus pés foram modelados. A relação com a cristandade aí se estabelece por sua demonização, vendo-a como um “anjo” para o qual “choravam as garotinhas que a adoravam,/ que venderiam suas almas para ser como ela,/ que fariam tudo que ela lhes pedisse”.

Embora, no livro, as meninas queiram se tornar iguais à imagem que idolatram, a própria boneca se questiona qual seria sua imagem. No poema O molestador da Barbie, em terceira pessoa, ela é encarada como objeto de novo, desta vez por um homem com problemas graves que a utiliza para algo que ele confunde “com amor”, não sendo o “homem natural, cheio de propósito feito uma lua crescente” que esperava ser. A falta de naturalidade das relações humanas da boneca é retomada em Barbie e Carrie, quando, assistindo a Carrie, a estranha, ela se vê com o desejo de “experienciar a maldição pelo menos uma vez”, a maldição de “sangrar” e de se relacionar com outros corpos, de se mover e de mover, como Carrie faz por telecinese.

Sua angústia por ser um objeto se intensifica em outras composições, o que a afasta das propriedades de um ser humano e, ao mesmo tempo, também a aproxima de ideais femininos. Em Barbie na terapia, sua terapeuta, tentando vê-la como mais uma paciente, imagina a boneca como alguém excepcional, “uma baita artista”, com uma autoimagem completa de si. Já em A filosofia da longevidade, segundo Barbie, o poema mais longo do volume, a noção de uma trajetória de vida é esboçada, sendo Barbie a candidata “perfeita” para uma vaga de “aeromoça” que, ao longo de décadas, modifica-se para atender às demandas da sociedade, apesar de, na verdade, não conseguir se relacionar ainda com os outros.

No livro de Duhamel, Barbie aparece como uma encarnação do corpo feito de a prioris, nas palavras de Wittig, razão pela qual, de modo paradoxal, ela permanece sem corpo de verdade, como não mulher. Essa tensão entre ser natural ou artificial, além de responder à ascensão da cirurgia plástica nos anos 1990, é um tema frequente da poeta. Para o público brasileiro, sua poética pode ainda remeter a autoras de produção recente, como Julia Raiz, uma das tradutoras do livro, e Natasha Tinet, que, por coincidência, também fez a arte da capa de Mundo Barbie. Felizmente, pela tradução, temos acesso a essa poesia que oscila entre a coloquialidade e a estranheza de certas imagens construídas, belas e, ao mesmo tempo, grotescas, tal qual a própria ideia da famosa boneca.