Ultimamente, adoecer tem significado múltiplas coisas, muito mais do que significaria alguns anos atrás. Adoecer, hoje, significa entrar para as cruéis estatísticas de uma pandemia e ser apenas mais um número para os noticiários e poder público; significa estar inserido em um contexto inescapavelmente coletivo e global e, antes de tudo, significa ser vitimado por um plano de genocídio nacional. Bem como pensa o filósofo Achille Mbembe, no livro Necropolítica, vivemos Estados nacionais e “democracias” em que o poder público possui “licença para matar”. Instaurar uma política de morte, especialmente para certos grupos sociais com endereço, cor de pele e gênero. Em outras palavras, adoecer, mais do que nunca, é resultado de ações e crivos políticos.
Um clássico nos coloca como espectadores de um homem ora enfermo de doença, ora das convenções sociais burguesas em que está inserido: A morte Ivan Ilitch (1886), de Liev Tolstói. A doença é uma espécie de consequência da vida em sociedade. Assim como feito por Tolstói, em Discurso sobre a metástase (Todavia), novo livro de André Sant'Anna, a mazela é transformada em gesto literário. Contudo, diferentemente de Ivan Ilitch, não temos personagem central ou narrativa convencional, e sim, uma crise que se sustenta para além de uma crítica de costumes e passa a ser uma crise política, humana, metafísica e, também, uma crise da própria linguagem.
Após sete anos sem livros inéditos, o autor retorna em uma obra múltipla e em aberto, que se espalha como uma metástase, contaminando diferentes linguagens e como produto de uma certa decomposição dos seus gestos literários. A metástase consome o próprio idioma e a própria cultura, em um texto de gênero indefinido. A literatura de André Sant’Anna é gerada pela ironia absurda e grotesca, como forma de lidar com a loucura e com o preço que se paga por sermos brasileiros nesse momento. No capítulo Os melhores do mundo, ele escreve: “O povo brasileiro come cocô, paga caro e acha gostoso”.
Ao observar seu pai e a rotina excruciante de quarto abafado, máquina de escrever e solidão, André Sant’Anna preferiu ser músico a ser escritor. Atuou como contrabaixista do grupo Tao e Qual, nos anos 1980, mas eventualmente se rendeu a fazer literatura. “Na verdade, André Sant’Anna não é George Harrison, estou confessando. É que ser o George Harrison é a melhor coisa que alguém pode querer nesta vida estranha, muito doida mesmo”, escreve na passagem A história de André Sant’Anna. E essa passagem não consta por acaso, pois é bem possível que tenhamos agora uma das obras mais musicais do autor: Discurso sobre a metástase carrega em seu título essa palavra que remete diretamente à mensagem oral. E é aqui que o André músico e performer leva às últimas consequências a eloquência de suas palavras, e pela força de dramaturgia de um autor já conhecido pela sua oralidade, enquanto autor que escreve também para o cinema. Discurso sobre a metástase é uma sinfonia caótica de vozes e gêneros textuais.
Nesse sentido, muito antes de remeter a Tolstói, Mbembe ou a Glauber Rocha (referência do autor em uma passagem do livro), o livro se comporta como um monólogo à la Rogério Sganzerla, com a fatalidade e caos ao estilo dos textos dos filmes da produtora Bel-Air e daqueles feitos na Boca do Lixo (SP). Ao invés da película, o papel em branco é uma tela de abstrações sobre um Brasil autóctone, desesperado e por vezes com tom de manifesto. Que, dadas suas particularidades, conceitualmente se remete ao manifesto divulgado por Sganzerla antes do lançamento de O bandido da luz vermelha (1968): “O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema — como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa, o som fugidio, os personagens medrosos. Nesse país tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento”.
Na sua estreia literária, em O amor (1998), Sant’Anna tendia a uma ideia de escrita bruta, inspirada na espontaneidade, experimentação e fora de um circuito de tradições artísticas. Já em O Brasil é bom (Companhia das Letras), de 2014, última publicação antes do Discurso, elabora um olhar antropocêntrico e irônico sobre a tendência conservadora que se vislumbrava. Uma literatura obsessiva com a natureza humana caótica, com personagens arquetípicos, que hoje parecem ter representantes muito mais radicais em altos cargos da política.
Talvez seja por isso que nesses sete anos sua linguagem tenha se radicalizado. Isso vem como parte de um processo de resposta à radicalização das tensões nacionais: escolhe-se falar da metástase social/histórica a partir de uma linguagem em metástase. Certa vez, para definir a obra de André Sant'Anna, o escritor Ronaldo Bressane descreveu o autor como um “gênio da burrice”. Em Discurso sobre a metástase, a genialidade ganha um verniz patológico, de obra paranoide e psicótica por natureza. Afinal, se o clichê diz que todo gênio é louco, então o Brasil é, hoje, um país genial. Parafraseando o personagem do Hamlet, em trecho do último texto do livro (uma peça intitulada O discurso): “Estamos mortos, apodrecendo... Não sei... Eu estou pensando. Eu penso demais, muito. Vocês também?”.