Resenha LucianyAparecida RuthDucasoAna Reis Divulgacao

 

Na cosmologia Yoruba, a palavra Florim faz referência a uma adaga de ponta curva que pode ser um dos símbolos da orixá Yansã. Essa espada curta nomeia a novela de Ruth Ducaso e abre delicados e diversos campos de significações da obra. Um livro sobre amor e sobrevivência, sobre memória ancestral e modernidade, tráfico de drogas e sequestro de vidas ou ainda o sagrado e o miseravelmente humano em todos nós. Florim é novela que explode e se expande das suas pouco mais de 60 páginas ao contar a história de Dita, uma mulher que trabalha no tráfico de drogas, vendedora de dendê na feira, moradora da Cidade Sanha, mãe de “nove menino” e que sonha ser nomeada poeta.

Além do título, outros elementos do livro o conectam ao mistério ancestral. Em uma das muitas versões sobre a vida de Yansã, dizem que teve nove filhos e nove são os filhos de Dita. Desses, oito são mudos, como os da orixá de sua cabeça, e apenas um é veículo da voz, Ney. A personagem de Ducaso, no entanto, sempre se refere aos filhos no singular, “nove menino”, nas diferentes situações em que seu discurso margeia o imaginário e já não sabemos se podemos confiar ou não na protagonista. A história de Dita não é enredo individual, é memória no plural, de mulheres negras que enfrentam as agruras da vida, de mães solo na criação dos filhos, mulheres que subsistem pelo trabalho precário em meio à violência, todos esses elementos sustentados pela tecnologia do racismo. Logo, Dita é a protagonista mulher que se fez pelo caminho, digamos, alheio, porque de tantas outras antes dela, e ao mesmo tempo esculpe caminhos das que virão a seguir. Uma história um tanto quanto repetida e invisível na realidade brasileira, mas que ganha revelo quando vira personagem da novela.

Já Ruth Ducaso, assim como Dita, é uma invenção, porém de outra ordem. Trata-se de uma das assinaturas poéticas da escritora Luciany Aparecida (foto) e assina também Contos ordinários de melancolia (paraLeLo13S, 2017). Esse volume de contos dá início ao projeto mais amplo da escritora, um conjunto de textos criados a partir da experiência de escrita narrativa (conto, carta, novela e romance) e surge a partir de um prêmio de criação da Biblioteca Nacional/Funarte. Florim é o segundo dos livros que, embora se interliguem com o projeto, podem ser lidos como obras independentes. A questão da assinatura poética e da autoria parece bem resolvida para Luciany Aparecida, porque a autora não aparenta tentar mascarar um nome, nem tampouco embarcar em modismos literários. A assinatura poética pode ser compreendida como certa dicção operada no interior dos textos de acordo com autoria que a escritora pretende desenvolver aquele momento. Assim, ela assina como Ruth Ducaso e em outros momentos como Margô Paraíso e Antônio Peixôtro. Isso é posto de modo cristalino para o leitor, ao ponto de a fotografia de Luciany Aparecida constar na orelha do livro juntamente com seus dados biográficos.

A novela Florim é conduzida por três vozes intercaladas; a voz da narradora, a de Dita em seu diário, e de Dita na poesia. Uma escrita que exige do leitor muita disposição e atenção, porque como anuncia o Prólogo: “Leitura é coragem e permissão” e, no caso do enredo de Dita, há muitas camadas, além da forma em sua expansão dos gêneros, que tensionam o leitor em seu gesto para alcançar o livro. Além das três marcações (narração/diário/poesia), há ainda um quarto elemento, também de destaque em todo o texto, a ser creditado a Ruth Ducaso, que aliás é a voz do Prólogo. São intervenções entre parênteses, em um primeiro momento lembrando o teatro clássico, e que também evocam as “experiências corais” de que fala Flora Süssekind em ensaio publicado em 2013. Em Objetos verbais não identificados, a crítica e professora da Unirio explica que dividem espaço no cenário contemporâneo as poéticas tradicionais, em formas homogêneas e estáveis, aquelas que ganham mais facilmente o interesse do mercado, e essas formas estranhas que mesclam gêneros, vozes e registros inclassificáveis. Florim é fruto estranho desse segundo tipo. Portanto, aquilo a que me refiro como intervenção às falas da narradora e de Dita acionam um outro elemento de força do texto, a marcação do teatro clássico a exemplo de Sófocles em Édipo Rei, e faz essa função de formas explicitadas por Süssekind.

As vozes em Florim são uma caixa acústica, abrigando a coralidade em que cabe de tudo um pouco: (seção policial), (mentira), (coro), (seção perigo), (boca do povo), (classificados), (stand up). Nesse ponto, mais do que as três dicções do texto, são os coros que criam uma possibilidade corpórea de proximidade com o leitor e também de questionamento do próprio fazer literário, um pouco como faz Sérgio Sant’Anna em Um discurso sobre o método. O coro formado pelos parênteses poderia ser formado pelos leitores ou por qualquer pessoa que observa a história e opina a respeito dela de longe. Não à toa, a epígrafe da obra é um texto de Lima Barreto, Casa de poetas (comédia em um ato), em que o autor também recorre aos parênteses para criar uma nova possibilidade de manobra do texto para o leitor. O chamado para a recepção, como acontece em outros livros de Aparecida, se mantém como marca. Dita ou Ruth ou seja de quem for a voz que nos guia nessa leitura anuncia o mistério, mas não encerra o livro. O leitor que se entenda com ele: “Escrevo. Estou sentada na Praça do Fim do Mundo com os papéis. Quente o dia. Pesados os papéis. Dita estará viva? Lampeja o menino encantado. (Silêncio)”.