Imagine um Brasil cujo presidente seja um famoso apresentador de televisão, que governa apenas para os seus iguais. Um colapsomêtro é instalado em Davos, na Suíça, como medida de segurança planetária, enquanto no Brasil, pesticidas extinguiram as abelhas e envenenaram o meio ambiente, reduzindo cidades inteiras a lixões a céu aberto. Depois do medo e da pandemia de covid-19, a prática do lockdown e de construção de zonas de exclusão se tornam recorrentes. O sistema de saúde funciona pelo WhatsApp, sem a possibilidade de atendimento médico real. Milícias controlam as áreas urbanas num país de miseráveis que vivem como mendigos. A crise econômica mudou radicalmente a vida nas cidades e reduziu o poder de consumo de seus habitantes. Uma classe média depauperada e desprovida de solidariedade vive trancada em cidadelas muradas, tentando se agarrar a quaisquer vestígios de privilégios — que, por sua vez, mínguam na mesma velocidade que a vida na Terra. A comunidade LGBTQIA+ passa a ser caçada e exterminada como alvo de um jogo online. Isso e muito mais compõem a Strawberry Fields distópica criada por Natalia Borges Polesso (foto) em A extinção das abelhas (Companhia das Letras), mas, ao contrário da canção dos Beatles, aqui tudo é real e muito preocupante.
Com notável domínio narrativo, Polesso concebe um mundo em colapso num futuro não muito distante, embaralhando fatos recentes da vida política nacional a seus possíveis desdobramentos ficcionais. O efeito é de desnorteamento, como se o leitor fosse convidado a passear com o Anjo da História — que foi arrastado de costas pelo vento corrosivo do progresso, tendo diante de si apenas a catástrofe do passado em ruínas — descrito por Walter Benjamin em seu texto Sobre o conceito de História (1940). Regina, uma das protagonistas do romance, se encaixa bem no perfil do anjo perplexo. Abandonada pela mãe ainda criança, ela padece de uma lucidez melancólica que compreende esse mundo rapidamente engolido pela barbárie, pela indiferença e por um discurso econômico que decide quem merece viver. A personagem, que é lésbica, convive com outras mulheres que amam mulheres e confronta o leitor constantemente com suas reflexões, que nos conduzem à pergunta: como permitimos que as coisas chegassem a esse ponto?
Do outro lado da narrativa está Lupe, a mãe de Regina, que fugiu com o circo nos anos 1990, deixando o marido e a filha pequena para trás. Lupe é o lado luminoso que falta a Regina, vivendo e amando sem grandes complicações. A mãe foge para viajar o mundo com uma trupe que vivia da montagem do espetáculo de Monga, a mulher que se torna gorila. Enquanto isso, na mais completa penúria financeira, a filha resolve abandonar a vida de revisora de textos com mestrado em teoria da literatura para se tornar camgirl, atendendo e subvertendo online os mais diversos fetiches sexuais, vestida com uma máscara de gorila, num dos momentos mais divertidos do livro.
Natalia Borges Polesso tece seu romance com um intricado jogo de vozes narrativas em primeira e terceira pessoa, no qual várias mulheres conduzem a história junto ao narrador onisciente que tem a visão geral do processo iniciado com a traumática eleição de 2018 e a subsequente naturalização de mentiras e discursos violentos contra corpos, saberes, populações e o meio ambiente. Os capítulos são encadeados de maneira engenhosa — a última palavra de um é sempre o título do próximo, dando fluidez e movimento constante à história de um mundo que se despedaça sem remissão aparente.
Embora o romance descreva o fim do mundo tal como o conhecemos, Polesso consegue produzir beleza a partir do desencanto, como se o fim fosse também a possibilidade de um recomeço mais solidário, a partir de uma ética voltada para a comunidade, que pusesse em movimento novos desejos e sonhos de revolucionar as relações e os afetos; afinal, “o fim do mundo exigia decisões impossíveis”.
Há uma metáfora muito interessante no romance — o aparecimento de um segundo sol, após a explosão da estrela Betelgeuse, a alfa da constelação de Órion — que remete às suas duas personagens luminares. O planeta Terra passa a ter dois sóis que extinguem as noites e, com elas, a possibilidade do amanhã, já que o dia se pereniza numa claridade constante. Como as duas estrelas no céu, Regina e Lupe vivem suas histórias em paralelo, cada uma com sua percepção particular sobre a dinâmica entre luz e escuridão.
Dolorosamente necessário, o texto de Natalia Borges Polesso nos olha de volta e nos interpela diante desse estado de coisas: “Comemoramos. Nos lamentamos. Não atentamos para os sinais. O que estávamos fazendo de verdade?” Assim, o romance cumpre certa função literária ao provocar reflexões necessárias enquanto narra os acontecimentos e aventuras das personagens diante do fim do mundo. Dadas as circunstâncias absurdas em que estamos vivendo e a maneira resoluta com que caminhamos para nossa própria destruição enquanto espécie, A extinção das abelhas é um livro que tende a crescer ainda mais com o tempo, com lugar assegurado entre os romances definitivos do Brasil pós-2018.