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Dois livros recentes trazem de volta Sérgio Sant’Anna (1941–2020), que lamentavelmente perdemos para a covid-19: O conto não existe (Selo Pernambuco/ Cepe Editora), seleção de entrevistas e ensaios do autor, organizada por André Nigri e Gustavo Pacheco, este último também responsável pela organização de A dama de branco (Companhia das Letras), que contém dezessete contos e uma novela — ou narrativas, como o escritor preferia denominar seu trabalho de ficção. A publicação de ambos quase ao mesmo tempo permite esboçar o perfil deste que é um dos maiores escritores da moderna literatura brasileira, autor de uma obra que transforma a autorreflexão textual em matéria narrada e vice-versa, fazendo desse trânsito de mão dupla o traço diferencial do alto nível artístico alcançado por seus textos.

Para quem “todo artista é um crítico”, o ofício de escrever é por si mesmo um ato de compromisso político que dispensa atuações extraliterárias para afirmar-se como tal, mesmo porque seu conceito de literatura é generoso, indo “dos clássicos aos comics”, do rock and roll às frases de privada, estas últimas a “verdadeira literatura underground brasileira”, segundo o escritor. Não por acaso seus textos ficcionais têm acentuada dicção ensaística, rompem fronteiras de gêneros e barreiras que separam a literatura de outras artes, levam ao limite da implosão a natureza figurativa de enredos e personagens. “É como se o mundo, para mim, já surgisse filtrado pela representação” diz. E acrescenta: “Digamos que eu tenha uma certa dificuldade com a realidade bruta”.

A imagem do escritor diante da página-tela em branco se repete em diferença no espaço e tempo da escrita que a transforma em mesma e sempre outra, como na música de Erik Satie (1866–1925) ou na obra de Marcel Duchamp (1887–1968), inspirações confessas de Sant’Anna. Essa imagem como que perpassa, com maior ou menor nitidez, muitas de suas narrativas, fio temático que os textos desenrolam, graças às “rupturas internas” — a expressão é da artista plástica Rosângela Rennó — que acentuam a contemporaneidade da escrita e sua natureza experimental, na linha de alguns mestres de predileção do autor: Joyce, Clarice e Guimarães Rosa. Nada melhor para exemplificar esse procedimento do que Vejo, do livro A dama de branco, em que visões e leituras as mais diversas se tornam mininarrativas ou narrativas virtuais; e ainda uma cena de Carta marcada, na qual referências a Proust, Baudelaire e outros se misturam a um quadro em que a personagem feminina é retratada com suas amigas da alta sociedade como prostitutas num bordel.

Se para Sant’Anna tudo “é de certo modo ficção” — a frase é de seu personagem Manfredo Rangel, frisa o escritor ao repeti-la —, dar entrevistas também é, o que nos leva a pensá-las e à sua obra como autoficção, uma via de leitura possível principalmente nos seus dois últimos livros. Em muitos desses textos, a reminiscência é uma forma de prestação de contas de quem se vê próximo do fim e se lança ao ilimitado da memória em busca de uma possível — e inalcançável — explicação da história pessoal. No conto que dá título ao livro, a dama de branco é explicitamente relacionada à morte, desejada, embora temida, a exemplo de Anticonto, O pregador ou de A aparição. Seu corolário é o nada ou o eterno, o que dá no mesmo, considerando o lugar insignificante e espantoso do ser humano diante do universo, “trilhões de astros, com seu calor imenso e o som de explosões”. A aproximação dessas duas quantidades ou realidades tão desiguais se repete em textos nos quais a especulação sobre a morte assume função proeminente e se liga à paixão sexual.

Amor e morte definem o erotismo, na medida em que coloca em ação continuidades e descontinuidades cuja experiência é própria somente aos seres humanos diante da morte e/ou do sexo: la petite mort expressa em francês o período imediatamente posterior ao orgasmo. Na novela Carta marcada, uma espécie de despedida do emitente em “estado terminal” aos Alcoólicos Anônimos, dos quais faz parte, narra-se um triângulo amoroso que conjuga exasperação sexual e laços meio incestuosos de família. Por meio de lembranças da juventude, toma-se conhecimento dos anos da formação intelectual e da erotização da vida entre o narrador, a esposa e a cunhada. Relação permeada por palavras de Baudelaire no Spleen de Paris: “Il faut être toujours ivre”, repete Alessandra, a amante, não sem ironia, em virtude da compulsão à bebida do narrador.

É preciso estar sempre embriagado — eis a questão que os textos ficcionais de Sant’Anna configuram de forma transgressora ao se abrirem a um “jogo erótico cheio de mecanismos”, à maneira de A noiva despida por seus celibatários, mesmo de Duchamp, que o escritor reivindica para uma de suas obras em entrevista de 1997, por ocasião do lançamento conjunto de Um crime delicado e Contos e novelas reunidos. A “alta voltagem erótica e visual” de suas narrativas têm nas artes plásticas e no cinema de Godard um referente notável, como se o escritor traduzisse “o que é pictórico para a palavra”, convertendo-se numa espécie de texto-instalação, no qual os significados dependem da participação ativa do leitor, que passa assim a fazer parte indispensável da obra em processo interminável de criação.

Em geral, o ponto de vista desses textos é meio anárquico, atravessado por ironia e humor, na linha de Oswald de Andrade, que Sant’Anna considera um de seus precursores por ter aberto “caminhos e possibilidades que não se esgotam em seus livros”. A questão da vanguarda se impõe decisiva: se é próprio do homem buscar o novo — “mesmo quando esse novo se encontre na revisão do passado dentro de uma tradição” — não se deve estratificá-lo, “inibindo as novas gerações”. Nesse sentido, o aparecimento de Cortázar (1914–1984), Rubem Fonseca (1925–2020) e Donald Barthelme (1931–1989), por exemplo, coloca o conto na posição que passa a ocupar desde então, “na fronteira entre o conto e aquilo que não o é mais”.

O legado de Sérgio Sant’Anna para a literatura brasileira é incontornável, sobretudo num momento em que as instituições culturais do país não param de desmoronar. Seus textos restam como forma de resistência — “momentos muito breves de felicidade”, como o escritor diz num de seus contos. Fazer durar esses momentos é, hoje, a tarefa prioritária que cabe a quem escreve e a quem lê.