“Até algum tempo atrás, a pessoa já nascia, em Pernambuco, envolvida com história oral”, gracejou o historiador Evaldo Cabral de Mello em uma entrevista. E arrematou: “Nascia ouvindo falar na expulsão dos holandeses e na Revolução de Dezessete”. A ironia do comentário é cirúrgica. Vai iluminar sua análise sobre a maneira como a complexidade do mundo luso-atlântico que envolveu o Nordeste na primeira metade do século XVI forneceu a evidência empírica para o entendimento do imaginário pernambucano.
Desde a década de 1970, Evaldo Cabral vem construindo uma narrativa inovadora sobre a História do Brasil. Vista em perspectiva própria, essa História não se comporta como uma mera extensão do que se passava no Rio de Janeiro ou no sudeste do país — seu ponto de mirada é a realidade do Nordeste açucareiro e muito particularmente de seu estado natal, Pernambuco. Ela começa ao tempo da América portuguesa e da realidade canavieira e se estende por pouco mais de três séculos até desembocar nos anos da Independência, fartos em complexidade e contradições. Durante o trajeto, Evaldo vai amarrar num só raciocínio o modo como o culto da Restauração — a guerra contra os holandeses que durou quase 10 anos — construiu certa mitologia nativista pernambucana, ao mesmo tempo em que forneceu matéria-prima para um modelo fácil de identidade regional.
É uma história intrigante. Os pernambucanos se enxergaram na guerra holandesa, ocorrida na segunda metade do século XVII, de uma maneira cuidadosamente idealizada. Graças a essa idealização, contudo, eles foram capazes de construir uma narrativa com potencial simbólico e força retórica suficientes para abrigar reivindicações de soberania e autonomismo político ao longo de dois séculos. Funciona como uma espécie de mito de fundação: Pernambuco derrotou o invasor holandês em uma guerra travada às próprias custas. O retorno ao domínio português seria, portanto, o resultado mais espetacular de uma escolha livre, decidida pelos colonos vitoriosos, pactuada com a Coroa debaixo de condições que ela jamais cumpriu. Um episódio tão decisivo para Portugal e de tal forma grandioso implicava certa dose de simetria e os pernambucanos passaram a se entender, a partir de então, como súditos especiais, mediados por uma espécie de contrato na relação de poder com o rei português. No final das contas, Lisboa lhes devia prestígio, cargos e privilégios.
Essa imagem de si próprios, que os pernambucanos trataram de projetar no tempo largo da História como memória e como base para ação política, deu certo. A toada da elite açucareira de que os holandeses acabaram expulsos da América portuguesa “à custa do nosso sangue, vidas e despesas de nossas fazendas”, não tem amparo na realidade. Tampouco se sustenta a versão heroica sobre o modo como a invencível Holanda foi batida por pernambucanos armados com “paus tostados e descalços” — as duas versões são um modo esperto de ajeitar a história com a mão. Na realidade, o apoio de Lisboa não só existiu como cumpriu um papel para a vitória final, diz Evaldo, e o arremate da guerra veio da negociação. Portugal pagou aos holandeses uma indenização e tanto: sessenta e três toneladas de ouro foi o preço para receber de volta o Nordeste e encerrar de vez a disputa com a principal potência econômica e militar do século XVII.
A versão heroica fez o orgulho da gente da terra e foi produto do imaginário local, mas sua potência de mobilização política não tinha nada de ilusório. Essa versão atravessou o século XVIII com tal intensidade que pôde ser eventualmente apropriada pela elite açucareira em sua pretensão de mando político e ambição aristocrática. Tornou-se parte da história do Brasil. No século seguinte ultrapassou a elite açucareira, consolidou uma linguagem política característica do nativismo pernambucano e fabricou um vocabulário próprio, de natureza autonomista, facilmente distinguível no decorrer de quase dois séculos. Conseguiu transitar ativamente por dentro da estrutura social, capturar seus extratos intermediários e se repartir entre as camadas populares. Emerso desse imaginário, o nativismo pernambucano e sua longa história de soberania e autogoverno serviu para mobilizar o apoio de diferentes setores da sociedade, a partir de 1817 — deu forma e acabamento ao projeto alternativo da Independência e acendeu o pavio da Confederação do Equador, em 1824, e da Revolução Praieira, entre 1848 e 1849.
A recente edição de A guerra holandesa (Penguin–Companhia), de Evaldo Cabral de Mello, traz a trilogia em que o autor reconstrói essa história: Olinda restaurada, O negócio do Brasil e Rubro veio. A trama é detalhada pela narrativa de um dos grandes historiadores do Brasil — não só de agora, mas de qualquer época. Tal como a literatura, a história é feita de enredo, intrigas e peripécias. Mestre da arte de narrar, Evaldo parte da descrição detalhada de determinados eventos ou personagens para concentrar a análise em alguns eixos principais: guerra, açúcar, diplomacia, o imaginário do político. Em algum momento, ele vai refletir sobre como o tema foi tratado anteriormente pela historiografia e, ao longo da narrativa, esmiuçar em cada documento o dado empírico. Um narrador que se preza não avisa nada, de antemão. O acontecimento já teve início, a conjuntura é imprecisa, o evento ainda não se definiu. Tudo pode ocorrer — ou pode ocorrer nada, como ele diz. A chave da originalidade de sua narrativa é essa: a escrita de Evaldo examina a possibilidade de que as coisas possam ser diferentes do que foram. Em história você não pode acreditar que as coisas que ocorreram tinham necessariamente que acontecer assim, ele costuma avisar ao leitor. E completa: A história, como a vida, cabe no verso de Manuel Bandeira: ela também é aquilo "que poderia ter sido e não foi”.
Olinda restaurada abre a trilogia. Evaldo quer compreender as guerras holandesas, mas a abordagem está concentrada em dois temas até então inexplorados pelos historiadores. Por um lado, o livro argumenta que as guerras não são apenas pelo controle das fontes brasileiras de produção do açúcar. Essas são guerras sustentadas pelo açúcar — vale dizer, pelo sistema socioeconômico implantado no Nordeste para fabricar e exportar o produto. Desse modo, os custos do conflito irão recair, em grande parte, sobre a sociedade monocultora e escravocrata local e o livro vai reconstituir a maneira como, sem alternativa, a elite açucareira mobilizou para fins bélicos os recursos do engenho açucareiro.
Por outro lado, ele diz, existiram, na verdade, duas guerras convivendo de diferentes maneiras no Nordeste: a guerra de Flandres e a guerra do Brasil, o soldado holandês e o capitão da emboscada. A guerra de Flandres assumiu a forma de uma guerra de sítio das posições estratégicas — as praças fortes ao longo dos eixos fluviais — e sua arma principal consistia na artilharia. Já a “guerra volante” ou “guerra do mato” — hoje chamada guerrilha — era conhecida à época como “guerra brasílica” e foi aprendida com os índigenas na convivência e no conflito. Os combatentes faziam uso da tocaia, pelejavam com arco e flecha, grandes porretes de madeira, espingarda de pederneira, chuços e facão. Surgiam e desapareciam no fundo da floresta num repente e sem que se ouvisse um farfalho — era como lutar com fantasmas, conta Evaldo.
A guerra também é o assunto principal em O negócio do Brasil, desta vez associada à diplomacia. Evaldo reconstituiu o complicado contexto militar e político internacional e os temores da Coroa portuguesa em constante sobressalto diante da possibilidade de novo ataque ao Brasil. A guerra podia até ter terminado, no Recife, a partir da capitulação holandesa assinada no Campo do Taborda, em 1654. Mas prosseguia feroz mundo afora, com o bloqueio do Rio Tejo pelos holandeses, a guerra marítima de 1657 a 1661, a ofensiva da Companhia das Índias Orientais na Índia. Lisboa apenas respirou aliviada quando conseguiu abrir as negociações diplomáticas que levaram à assinatura dos tratados de 1661 e 1669. Só então a Holanda reconheceu a soberania portuguesa no Nordeste; em troca, recebeu uma formidável indenização em ouro, além de uma fieira de concessões comerciais. Foi, possivelmente, a primeira crise internacional da história do país, anotou Evaldo.
Rubro veio, o volume que encerra a trilogia, estava embutido em Olinda restaurada. O livro captura os procedimentos de construção do imaginário político que funda o nativismo pernambucano e realiza o processo a partir do qual diferentes grupos sociais passaram a compartilhar uma memória coletiva. O título dá a partida ao enredo do livro: alude aos versos do hino estadual que irá instituir esse imaginário como o momento em que o sentimento de liberdade teria germinado em Pernambuco antes do que no resto do país: “Coração do Brasil em teu seio/ Corre sangue de heróis, rubro veio/ […] Desse povo coberto de glória/ O primeiro talvez no porvir”.
A partir desse ponto, tudo o mais, em Rubro veio, prossegue surpreendente e inovador. Evaldo explora as mitificações históricas que sustentaram a construção das representações mentais, bem como os temas mais vivos e atraentes na composição desse imaginário. Mas, sobretudo, será nesse livro que ele vai estabelecer as três fases do nativismo pernambucano como fenômeno político e ideológico. A primeira se estende da capitulação holandesa em 1654 até a derrota da elite açucareira na guerra civil de 1710 a 1711 — a chamada “Guerra dos Mascates”. A segunda fase se prolonga até o início do século XIX com a Conspiração dos Suassunas e anuncia o projeto libertário que virá em seguida. A terceira fase tem início na Revolução de 1817, inclui o movimento de Goiana, as juntas provisórias entre 1821 e 1823 e a Confederação do Equador, até desaguar na Revolução Praieira.
Evaldo teima que é um historiador de província, regional, e pior, mais do que regional, um historiador que só trata da estreita faixa da Mata Norte — a região da costa entre Olinda e a foz do Rio Goiana. Quanto a isso não há o que fazer. Mas querendo ou não, sua obra revirou a reflexão sobre o país: Brasil não é um só, são muitos. Ao mudar nosso ponto de mirada, Evaldo escreveu uma história de Pernambuco que se desenha no e pelo Brasil. E certamente é mais do que isso. A narrativa é o ato de linguagem próprio ao pensamento e à imaginação, capaz de desvendar qual tipo de luz o passado oferece para nós, hoje, no presente. Sua escrita é poderosa: convoca a força da história que confere permanência às ações humanas para revelar aos brasileiros que os fatos dependem de nossas escolhas e o destino do país não está dado. Em tempos sombrios, nossa vantagem é essa — o futuro é uma questão em aberto. Afinal, como ensina Evaldo Cabral de Mello, “a história só é previsível depois que termina”.
REFERÊNCIAS
José Geraldo Vinci de Moraes e José Márcio Rego. Evaldo Cabral de Mello. In: Conversas com historiadores brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002;
Lilia Moritz Schwarcz (org.), Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. São Paulo; Belo Horizonte: Editora Fundação Perseu Abramo; Editora UFMG, 2008;
Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, Três vezes Brasil: Alberto da Costa e Silva, Evaldo Cabral de Mello, José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
Rafael Cariello, O Casmurro. Piauí. n°104, maio 2015.