LEIA
Arma ou adorno. Na mitologia grega, o chifre remete à figura da ninfa Amalteia, representada por Hesíodo em Teogonia como a dona da cabra que cedeu leite a um Zeus abandonado e com os irmãos devorados pelo pai. Daí vem as imagens da cornucópia, símbolo de riqueza e abundância, além da efígie pagã do Deus Cornífero, incorporada pela Wicca e símbolo de ocultismo e feitiçaria. Foi o grego Artemidoro quem deu o significado mais contemporâneo possível ao chifre com o termo kérata poiein, que significava “fazer corno a, enganar um marido”. Os gregos já eram cornos. Na cultura popular, a "gaia" aderiu aos sinônimos de traição, o que rendeu uma vasta tradição de canções e obras literárias sobre ser traído. Desde Byron e Goethe, passando por Reginaldo Rossi e Angela Ro Ro, até PJ Harvey e Taylor Swift.
De toda forma, a gaia pode ser simplesmente uma analogia para algo que alguém te coloca na cabeça: um sentimento que insiste, uma dúvida, um mistério, uma assombração ou um poema. Assim, a poeta pernambucana Adelaide Ivánova, que hoje reside em Berlim, partiu, em seu novo livro, do signo dos chifres para pensar a polivalência das imagens que atravessaram sua vida nos últimos anos.
Segundo ela, era preciso “pegar o touro pelos cornos, take the bull by the horns”. Retomar o controle de sua vida. Enquanto poeta que dispõe seu corpo para literatura, ela escreve: “o poema não existe fora do corpo da poeta”. E sua potência está em saber que esse corpo sofre, ama, goza, trai e é traído. Adentrando as políticas e potências da gaia, a Macondo edições lança Chifre, disponível em pré-venda.
No premiado O martelo (Garupa, 2017), a poeta apresentou uma obra em que o corpo é, entre outras coisas, a “prova do crime”. Se O martelo é como “uma mordida”, Chifre é uma “tomada de decisão”, uma teimosia em continuar a jogar contra o silêncio, as violências e inércias do mundo. Mesmo que disputando simbolicamente outras questões, Chifre segue a ideia de o livro ser a escavação de um signo e suas potenciais ambiguidades. É um desdobramento do projeto poético, consolidado no livro de 2017, que remete tanto à violência (proteger-se é também, de certa forma, em algum momento também atacar) quanto a uma espécie de início.
Lembro das imagens de Bull in the heather, do Sonic Youth. Penso também no fato de que, para gravarem o videoclipe, a vocalista e baixista Kim Gordon convidou Kathleen Hanna, riot grrrl icônica da banda Bikini Kill que, interagindo violentamente com os membros da banda, acabou fazendo Thurston Moore sangrar pelos lábios. Moore era guitarrista do Sonic Youth e na época estava casado com Gordon. "Tell me that you adore me/ tell me that you're famous for me/ tell me that your gonna score me/ tell me that you gotta show me/ tell me that you need to sorely/ time to tell your love story/ time turning over and over/ time turning four leaf clover/ betting on the bull in the heather",[nota 1] cantava Gordon como quem recita, lembrando bastante uma de suas ídolas, a poeta punk Patti Smith. Eventualmente, Moore colocou “um par de gaia” em Kim, tal qual narrado em A garota da banda, autobiografia da cantora. Segundo ela, a imagem de Bull in the heather é sobre encontrar outra forma de agressividade. Uma resposta que não implicasse participar de uma cultura dominada por homens.
Chifre é uma obra que busca se posicionar contra a cultura a que Kim Gordon se referia. Não de forma passiva ou sem ser ofensiva, mas jogando o próprio jogo para se emancipar das regras valorizadas pelo old white man's game. Contudo, antes de ser Chifre, Adelaide conta que o seu livro se chamaria projetos de separação, traçando um paralelo entre o seu divórcio e o golpe parlamentar sofrido por Dilma Rousseff — que levou “gaia” do vice e foi traída pelo próprio congresso brasileiro. “Mas a vida foi seguindo e fui perdendo o interesse em falar de semelhanças: diante do fenômeno do bolsonarismo e da chegada relativamente triunfal de um partido neonazista ao parlamento alemão, meu coração partido já não parecia mais tão urgente assim”, escreve a autora, no texto de abertura do livro. A urgência é o que motiva a artista. Mesmo que ela mude, os resquícios de algumas imagens permanecem, como acontece em Chifre: a separação de um romance e a separação da democracia estão lá não como objeto centrais, mas como uma espécie de sombra que paira sobre as outras imagens. Uma sombra da crise.
Dividido em três seções — “raiva, euforia, cansaço”; “writer’s block”; e “raiva, esperança, ação” —, o livro é sobre uma outra forma de dispor seu corpo ao mundo. “Um chifre é uma coisa linda, com funções maravilhosas para quem o tem. O Chifre também tem a ver com feitiço, manipulação, satanismo, coisa do capeta”, escreve a autora. Os primeiros poemas partem da ideia de como as coisas estão acontecendo sem alarde. Uma ideia de paralisia e inércia, que segue pelo livro, como se fosse muito difícil — e é — sustentar-se com as coisas se movendo com tanta velocidade ao nosso redor. Estamos cansados, mas também eufóricos e com raiva, e assistimos ao encerramento e ao desfazer das coisas.
deve ser nessa hora discreta
em que se encerram vidas
voluntariamente sem alarde
sem alarde fecham-se portas
negócios acordos em silêncio
as coisas se desfazem desistimos
quietos porque não é um espetáculo
e estamos fisicamente cansados
Em Os anos noventa, temos o sentimento de que tudo se foi e algumas coisas não voltarão mais, com exceção de certos projetos políticos liberais e precarizações de certos corpos na sociedade. de noventa fhc presidente desemprego torneiras secas filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas fhc ainda tem. As imagens do livro seguem uma práxis do looping: uma sensação de que voltamos vinte anos atrás, que nos acomete todas as manhãs quando vamos ler as notícias. Ainda temos que lutar por isso? Tudo saiu de lugar, mas, ao mesmo tempo, tudo permanece igual. É como tentar achar o fim na trajetória curva dos chifres de um carneiro. É como apoiar Kafka para a presidência. Já na série de poemas O ciúme, o looping é sob outra chave, a de todas as vezes em que este sentimento insistiu e das maneiras diferentes como se manifesta. No esquecimento ou na raiva que o ciúme não conseguiu despertar.
Para quem escreve, principalmente quem tem outra atividade laboral além da poesia, o processo criativo em meio a outras atividades é marcado por anotações em dispersão: em bloco de notas do celular, guardanapos e frases soltas em chats no WhatsApp, por exemplo. O bloqueio na escrita, fruto de frustrações e alvo de métodos diversos para contorná-lo, está na seção “writer’s block” em uma articulação mais ambiciosa e vertiginosa da linguagem de Adelaide. É um exercício de escrita que expõe rabiscos, formas e ideias que precedem o próprio poema: a seção traz textos que são como poemas-esboço, demarcando as anotações, os rastros e a trajetória para se chegar no poema em si.
notas pra um poema cujo título provisório é anti-premonição
tema: a vida pós-corona?
o encargo social da poesia?
usar as “premonições” da professora marina gouvea sobre covid?
anotações soltas meio bêbada:
Como dar conta de uma experiência poética
Dentro de um poema?
Como não ser piegas como não ser ridícula
Como ser útil como fazer jus a ai esqueci e O encargo social
?
Quero escrever um poema no qual eu esteja errada
uma espécie de anti
premonição
escrever um poema auto indulgente
que fale dos filhos que não vou ter que não pude
que não quis
que não me quiseram fazer
Adelaide dedica o poema Dar nome aos boys “para fabiana faleiros e todas as mulheres processadas por seus abusadores por terem dito seus nomes”. Em seguida, lista nome de artistas, instituições e políticos da ordem mais canônica. Entre os nomes está Zeus, figura referida pela escritora como “base dessa anti-civilização moderna”, e que ironicamente — como contei no início do texto — foi alimentado por um animal chifrudo. Tudo reitera como, simbolicamente, o olhar da testemunha, mesmo que não possa atingir diretamente os abusadores, é consciente das violências expostas. Repetir os nomes de quem cometeu a violência, lembrar como nenhum caiu — ainda assim, eles podem ser derrubados, simbolicamente, no texto. Como quem quer fraturar os cânones. Mas fraturar com os chifres.
Já como um nome consolidado da poesia brasileira que emergiu pós-2013, Adelaide trata aqui de coisas tangíveis, no sentido mais palpável do que seria agarrar o touro da crise pelas pontas. Esses chifres da crise poderiam por bem ser do touro dourado que fica inerte no Wall Street, e símbolo do capitalismo, que entra década e sai década permanece em crise humana. Penso no olhar e lembrar enquanto testemunha e lembro ainda de Madonna na canção Dark ballet: "They are so naive/ They think we are not aware of their crimes/ We know, but we are just not ready to act/ The storm isn't in the air, it's inside of us”. No caso da poeta, a tempestade está nessa arma pontiaguda. É sua ponta de lança. Com uma teimosia taurina, que não desiste de seguir lutando, se apaixonado e jogando o corpo neste mundo louco. Apesar de tudo.
MAIS TRÊS POEMAS DE CHIFRE, DE ADELAIDE IVÁNOVA
os anos noventa
você não estava lá nas coisas mais decisivas da minha vida
mas é assim mesmo: historiadores e arqueólogos
nunca estiveram presentes pra testemunhar
os levantes coletivos isso fazem os jornalistas e os
videntes você era apenas um menino quando
kurt cobain morreu nem poderia ainda saber o dano
que causaria sua existência de crisálida taurino e
primaveril quando meu destino cruzasse com o seu
e andaríamos de mãos dadas e suando verão afora
como se fosse o primeiro (e era) berlim não era
tão esplendorosa quantos seu cachos jakob mas você
nunca soube o que foi ter 16 anos em recife na década
de noventa fhc presidente desemprego torneiras secas
filariose cólera sem vale do rio doce mas tinha chico science
abril pro rock o pior é agora não tem berlim não tem recife
não tem chico science não tem kurt cobain nem você mas fhc
ainda tem
o ciúme #9
(pro ex, no seu aniversário de 27 anos)
foi horrível te deixar
tentando causar
comoção ou estrago
já que você
nem notou
sobre uma foto no huffington post,
em 01 de novembro de 2015
de que adianta esse pôster de madonna na
parede da cozinha indicando de qual lado
estou se na papua nova guiné continuam
linchando mulheres a quem chamam de bruxa
a papua pode até ser guiné mas nisso não
tem nada de nova e se for para queimar uma
mulher por bruxaria que queimem logo todas
de que adianta beyoncé avisando que vai sentar
o rabo na cara do boy e de que adianta eu me
inspirar nisso para fazer igual ou parecido se na
papua nova guiné sentam senhoras em telhas de
brasilit e com elas amordaçadas abrem nacos de
carne e sangue que na foto escorria pelas rugas da
telha pelas rugas das costas da mulher essa mulher
de cabelo curto e preto de costas na foto parecia a
minha mãe eu perdi o controle não consegui mais
almoçar e sei que não vou conseguir dormir mas
de que adianta minha insônia e meu jejum e esse
poema se na papua nova guiné não iriam entendê-lo
e mesmo a compreensão dele não salvaria a vida da
mulher e mesmo no brasil onde se pode entendê-lo já
se sabe que poemas tal qual leis não mudam nada tudo
sobre isso já foi legislado e dito em todas as línguas
também em português mas meu deus
de que adiantaria meu silêncio?
de quem estaria meu silêncio a serviço?
NOTAS
[nota 1] "Diga que me adora / diga que é famosa por mim / diga que você quer pontuar comigo / diga que você quer me exibir / diga que você precisa dolorosamente / hora de contar sua história de amor / hora de girar e girar / hora de transformar um trevo de quatro folhas / aposte no touro na urze." (Tradução livre)
[nota 2] "Eles são tão ingênuos/ eles acham que não sabemos de seus crimes/ sabemos, mas simplesmente não estamos prontos para agir/ a tempestade não está no ar, está dentro de nós." (Tradução livre)