Olho para o fio de datas que o Manual do Minotauro (Companhia das Letras), de Laerte, concede: tirinhas que vão de 2004 a 2015. Penso na história por trás dos números. No mundo, parecia que havíamos entrado enfim no século XXI, depois do 11 de Setembro dos Estados Unidos, que deflagrou uma guerra ao terrorismo — e por terrorismo aqui leia-se o “outro”, o “diferente”, a cor da pele. Aeroportos e ruas das grandes cidades se tornam campos de investigação. Uma foto no passaporte não é só mais uma foto no passaporte. É quando o corpo entra em cena de novo como escudo e arma de ataque. No Brasil, começo da era Lula e a frágil ilusão de que a democracia chegou para ficar. Para Laerte, como ela própria apontou, foi um período em que “tudo se radicalizou”.
Laerte deixou de publicar as tirinhas Piratas do Tietê em 2004. Não dava para resolver mais o que tinha para dizer com o arremedo de uma piada. Em 2005, o filho Diogo morreu num acidente de carro. Nos anos seguintes, num longo processo público, e de debate público, foi deixando de ser “O Laerte” para se afirmar como “A Laerte”. Primeiro se diz crossdresser, depois crossdresser e gay e, por fim, mulher trans. Tudo se radicaliza e a artista se impõe. A primeira tirinha do Manual parece acenar para quem ficou tentando interpretar a mudança, encontrar nela algum significado, algum trauma. Temos uma mulher conversando com uma esfinge. Diz que não consegue decifrar o seu enigma. Mas não há enigma. “É um poema”, corrige a esfinge. Primeira lição de literatura: poemas não se decifram. Ou é feita a travessia até o outro ou nada feito.
Agora vamos para a data em que as tirinhas se encerram: 2015. Já vivíamos em meio às teorias conspiratórias das redes sociais e as jornadas de 2013 reavivaram por um lado a nova onda feminista e, por outro, o ovo do fascismo. Era o primeiro ano do segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff e também o último antes do golpe parlamentar de 2016. A marcação 2004 a 2015 parece uma espécie de prefácio, uma preparação para todo o insólito que viria a seguir. Para alguns, o século XXI não “começou” no 11 de Setembro de 2001, mas na pandemia deflagrada em março de 2020. Lembro que, nas primeiras semanas do estado pandêmico, muitos repostaram uma tirinha de Laerte de 2013. Aquela em que uma ficha de orelhão ruma em direção à Terra com os dizeres “A grande ficha. Em algum momento... Ela vai cair”.
Com a atual reunião num grande volume é possível perceber o quanto a obra de Laerte nos incomodou, nos assaltou e, também, nos ajudou a atravessar o terror das duas últimas décadas, quando fomos obrigados a lembrar (ainda que para alguns a grande ficha não tenha caído) que tudo é política, do voto ao corpo. Com o Manual do Minotauro é possível ainda reposicionar a produção de Laerte junto a algumas das grandes obras literárias produzidas no Brasil nesse começo de século, vagalumes a apontar nossa rota, a saber algumas delas: Eles eram muito cavalos (Luiz Ruffato), Um defeito de cor (Ana Maria Gonçalves), Um útero é do tamanho de um punho (Angélica Freitas), Como se estivéssemos em palimpsesto de putas (Elvira Vigna) e Machado (Silviano Santiago). Laerte estava certa: não dava para continuar resolvendo as coisas só com uma piada.