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Os diários de Emilio Renzi/Ricardo Piglia são uma experiência única de escrita e leitura, somente tornada possível por obra de um grande escritor. O terceiro e último volume — Um dia na vida (Editora Todavia, tradução de Sergio Molina) — vai de 1976 até a doença que o matou, em janeiro de 2017, cobrindo o mais expressivo período de realização intelectual e artística de quem dedicou toda a vida à atividade literária. Da feitura de Respiração artificial (1980), seu romance mais famoso, às aulas em Princeton e aos efeitos da última ditadura argentina, da participação na criação da revista Punto de vista à ideia recorrente de suicídio, tudo converge para a reflexão sobre o “modo de fazer e ler literatura”, realizada como uma “autobiografia teórica” em que o autobiógrafo se desdobra num outro já contido no seu nome próprio completo — Ricardo Emilio Piglia Renzi —, mistura de “verdade pessoal e ficção”.

Como em geral é comum ao diário, em princípio escrito só para si e sem destinatário, Um dia na vida tende a ser uma ficcionalização da autoria e, no limite, um texto sem autor, justamente em razão da presença excessiva do sujeito que se traduz por “acontecimentos, lembranças, ideias, sentimentos, conversas e esquecimentos”, ora autônomos, ora congeminados, como se se ordenassem em séries ou blocos que dão ao andamento narrativo uma forma peculiar. Se, de acordo com a referência a Brecht, a experiência vivida é incomunicável e só se pode “viver em terceira pessoa” — base da sua teoria do efeito de distanciamento —, a escrita do diário é a rigor impossível, ou se realiza apenas “para dizer que não se pode escrever”.

A dramatização desse paradoxo confere às páginas dos cadernos negros, suporte material da escrita, valor artístico incontestável, ao tomar a literatura “a partir de um lugar não estabilizado”, rompendo com o horizonte de expectativa do leitor e fazendo dele seu cúmplice no crime perpetrado contra as boas maneiras literárias, à maneira de Roberto Arlt (1900–1942), referência confessa dos diários e, de resto, dos romances, contos e ensaios de Ricardo Piglia, um “socialista utópico”, nas suas palavras.

Por isso, sua escrita é preferencialmente um laboratório de literatura potencial ao modo do grupo francês OULIPO, na medida em que supõe, no caso, uma difração, forma que “a vida adquire ao ser narrada num diário pessoal”. Difração, etimologicamente, é “quebrar, espedaçar, fazer em pedaços”, como a passagem de uma onda pela borda de uma barreira, ou através de uma abertura, provocando um alargamento ou comprimento da onda. Da experiência mais íntima à mais geral, os “diários”, não à toa no plural, desfazem fronteiras de gênero, pela troca da “longa duração pela micro-história”, acentuando o aludido paradoxo, dessa vez pelo tratamento dado ao tempo narrativo e a seu andamento ficcional, principalmente na terceira parte do livro, intitulada, surpreendentemente para um diário, Dias sem data.

É o que ocorre, por exemplo, com as microficções que a todo momento se fazem presentes, como no projeto de “escrever a biografia da filha de Madame Bovary como operária têxtil” ou “a biografia de Lucia, a filha de Joyce, que morreu nos anos 50 numa clínica psiquiátrica”. Ficções de ficções, na melhor tradição — borgeana — da literatura argentina e que no caso dos diários se apresentam muitas vezes na forma de projetos apenas enunciados e nunca realizados, mas, mesmo assim, carregados daquela potencialidade com que o escritor concebe a literatura, ciente de que “a narração social se deslocou do romance para o cinema e depois do cinema para as séries e agora está passando das séries para o Facebook e o Twitter e as redes da internet”.

E mais ainda, ficções de ficções tendo em vista a “tradição dos livros incompletos”: Macedonio Fernández, os romances de Kafka, Bouvard e Pécuchet (de Flaubert), O homem sem qualidades (de Musil) são alguns dos precursores de Renzi/Piglia. Pode-se ver aí não uma limitação ou impossibilidade, mas o resultado daquela difração, que se cumpre pela obsessão de “ocupar dois lugares, ser outro em cada um deles”, premissa de todo aparato ficcional e que o diário acaba favorecendo pelo desdobramento do sujeito: “Falo e sou outro, estou afastado de mim, alguém anota o que escrevo. Sensação de estar desdobrado”.

Viver ou escrever? A alternativa do diarista se reveste muitas vezes do desejo de morte pela reiteração da ideia do suicídio, que se coloca como possível resposta à questão, origem, em suma, de toda escrita de si — “a relação entre o suicídio e a escrita de um diário é íntima (ver Pavese, Kafka etc.)”. Superá-la pode significar viver a vida como literatura, recorrendo ao expediente que o diarista vê em Saul Bellow, para quem o que importa é como a “consciência dos personagens define — e dá forma — à realidade”.

Numa das cenas mais belas de Um dia na vida — quem sabe sua síntese —, o narrador e um amigo visitam, no norte da província argentina de Jujuy, uma casa que guarda a primeira edição de Dom Quixote, matriz de todo relato: “A aura da arte nos espera nos lugares mais inesperados”, registra o escritor. Inclinam-se sobre a vitrine em que o livro está exposto e depois, emocionados, saem para “o ar límpido da tarde no campo deserto”. Onde a vida, onde a literatura? Cumpre-se e se justifica, assim, o que talvez seja o mais importante objetivo da escrita dos diários, “fixar — ou reler — um desses dias de inesperada felicidade”, a ser compartilhada, enfim, com o leitor.