O que uma obra de ficção é capaz de mobilizar em seus leitores? É através da tessitura de controvérsias em suas recepções que alguns títulos acumulam texturas a mais: tornam-se espécies de lendas, feitiçarias e totens que despertam tanto o fascínio quanto a repulsa. Nessa estirpe de obras iluminadas e amaldiçoadas, Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ocupa um lugar importante na historiografia dos romances com recepções pungentes. A realidade enquanto poesia no sofrimento jovem de Goethe: a saga do personagem se tornou um viral por seu tom romântico e confessional, fazendo muitos homens europeus se vestirem como seu protagonista, enquanto era inflamada na sociedade acusações do romance estimular uma epidemia de suicídios.
O clássico do romantismo ganha nova edição agora pelo selo Penguin-Companhia. A publicação chega com com tradução direta do alemão por Mauricio Mendonça Cardozo, além de ser riquíssima em detalhes e contextualizações críticas, com introdução do poeta e crítico inglês Michael Hulse. A capa da edição foi feita por Ale Kalko, em um roxo quase neon, mostrando o que poderiam ser as fibras de um coração pulsando diante da nossa cara ou mesmo uma rede de conexões e caminhos possíveis. Ou talvez um labirinto emocional.
Um fatal deslocamento geográfico. A história de Werther se inicia quando ele se muda para as paisagens bucólicas na intenção de cuidar dos negócios da família. Assim como ocorre em todo deslocamento, algumas coisas tendem a ficar fora de lugar em meio à troca de passagens. E da mesma maneira que se apaixona e se inspira artisticamente pelos vales e campos, enxerga em Charlotte – uma personagem que é a efígie máxima dos desejos e idealizações do protagonista masculino – uma presença indissociável da paisagem. Parte daquela natureza, um lugar da beleza a ser habitado. Entretanto, ela já está prometida em casamento a Alberto, um homem nobre que antagoniza com Werther, cujo temor é ser inferior a ele em todos aspectos. Como de se esperar de uma relação platônica – esse tipo tão virtuoso quanto trágico de armadilha –, os sentimentos de Werther por Charlotte vão crescendo a ponto de o ocupar por inteiro. Aos poucos, intermediado pela impossibilidade de concretização, transmutam-se em angústia. O amor como ruína pessoal.
No naipe de livros que alcançaram mobilizações radicais nas mãos de seus leitores, e na mesma medida ajudaram a modular ideias de juventude cada um no espectro de seu tempo, Os sofrimentos do Jovem Werther talvez esteja ao lado de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger e Pé na estrada, de Jack Kerouac. Todas elas são obras que reiteram um fenômeno jovem semelhante: suas repercussões malditas/iluminadas as tornam cada vez mais célebres.
Esses livros são vistos como motivadores de acontecimentos históricos: desde epidemias de suicidio, passando pelo caos criado pela geração da contracultura e sua descoberta da estrada norte-americana, até o assassinato de John Lennon. É claro, não se trata aqui de reduzir suas potências às atitudes tomadas individualmente por leitores específicos. Mas, sim, pensar como essas atitudes acabam por confundir narrativas e embaralhar falsos tratados de passividade estabelecidos entre texto-leitor. São exemplos que levam ao extremo o gesto de atividade e mobilização da leitura.
No caso da obra de Goethe, um dos gestos que mais repercutiram foi a história de Fanny von Ickstatt, uma das jovens supostamente sensibilizadas pela morte de Werther, que saltou de uma torre da Frauenkirche, em Munique. Logo depois surgiu um poema escrito por ela que supostamente culpava a tragédia no romance de Goethe. Como resposta, o livro teve tradução proibida na Dinamarca e na Itália. Em Leipzig, desde o estilo de vestuário de Werther até o livro em si foram banidos em 1775.
O livro de Goethe serviu de inspiração para o termo “efeito Werther”, expressão atribuída ao fenômeno que ocorre quando certo indivíduo comete suicídio e se torna inspiração a outros fazerem o mesmo. Em uma espécie de fenômeno que tem seu páthos preservado séculos depois nas artes, quando Ian Curtis, vocalista do Joy Division, cantou “directionless so plain to see/ a loaded gun won't set you free” (“sem direção, simples de ver/ uma arma carregada não pode te libertar”, tradução livre da música New dawn fades) e “love will tear us apart” (“o amor vai nos separar”, de Love will tear us apart, última música feita antes do suicídio de Curtis). Ou até num gesto definitivo reencenado por Kurt Cobain – que tal qual Werther – puxou o gatilho de uma arma apontada para sua própria cabeça. “And I swear that I don’t have a gun” (“e eu juro que não tenho uma arma”, em Come as you are).
Contudo, quais seriam as possibilidades de se pensar a moral “de um livro maldito”? Os sofrimentos do jovem Werther é um dos primeiros a ocupar um lugar confessional e de traços autobiográficos na obra de Goethe, sendo descrito como um título que teve um processo de escrita sonâmbula, produzido em uma incursão de inconsciência durante quatro semanas. O protagonista devaneia nos primeiros capítulos a ideia de a vida humana ser apenas um sonho e que se trata “de uma sensação que também há muito me acompanha”.
A visão onírica o acompanha por toda a trama, na sacralização do desejo por Charlotte ou até mesmo em sua decisão por um fim. “Que importa que Alberto seja teu esposo? Esposo! O título seria, pois, apenas para este mundo... como para este mundo é pecado o amor que sinto por ti", sentencia Werther. Ao se referir a “este mundo”, o jovem parece denunciar uma instância do onírico – encontrado no sono da morte – contra o mundo real em que Charlotte está comprometida. A moral romântica está em crer na transcendência para outro mundo. Pulsão que liga as vontades, paixões e o amor, ao desejo de morte. A morte, em Os sofrimentos do jovem Werther, não representa um fim em si, mas uma travessia. Uma transcendência para um mundo onde o amor platônico é possível.
É fundamental, também, analisar Os sofrimentos do jovem Werther sob a sua linguagem de uma correspondência e que, como toda carta ou diário, está à espera de ser violada. Escreve-se sempre para alguém. Temos acesso a uma linguagem de intimidade e ao fluxo de ideias delitantes juvenis, que reúne uma série de zeitgeists de uma juventude que vivia as idealizações políticas das revoluções liberais que se alastravam pela Europa. “Reuni com cuidado e apresento-lhes, aqui, tudo o que pude encontrar da história do pobre Werther; sei que vocês me agradecerão por isso. Não se furtem a estimá-lo e a admirá-lo por seu caráter e seu espírito, nem lhe neguem as lágrimas em razão de seu destino”, escreve Willhelm, o editor e amigo de Werther, que recebeu as cartas.
Enquanto artista, Goethe sempre se posicionou como alguém que travava uma batalha para recuperar uma harmonia clássica e grega. Seu protagonista exibia sua visão de mundo a partir das artes, ao se referir à pintura e à poesia, que “tudo é uma questão de identificar o que há de excepcional e de ousar dizê-lo, o que, sem dúvida, é dizer muito com muito pouco”. A busca por alguma forma de iluminação e transcendência da linguagem. Por isso o dilema moral de Werther e seu romantismo é de toda forma hipnótico e sombrio, ao mesmo tempo, dialoga com valores culturais seculares.
A visão cultural de Goethe é muito propícia a concordar com o crítico literário Silviano Santiago, que, para pensar a análise da literatura, diz que os princípios estéticos precisam ser harmonizados com os valores culturais. “Literatura é e não é”, diz Silviano. E nisso cabe muito feitiço, do tempo, de leitores, de místicas entre o que uma obra pode ser para uma geração. A literatura é e não é perigosa. Seja alguém enfeitiçado ou não pelo romantismo fatal de Werther, para todos os efeitos, talvez o ditado espanhol seja a resposta inexata mais precisa para pensar essa mística entre a obra e seus efeitos poderosos em leitores: yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay. Tudo é possível.