Por quais astúcias da teimosia do ausente — belo título de um de seus poemas — vim a tomar ciência tardiamente da obra de Ida Vitale? Por um imprevisto prosaico, digamos assim. Eu conheço a editora e tradutora da recém-publicada antologia poética de Vitale, seu primeiro livro no Brasil: não sonhar flores. Vem sob a rubrica da Roça Nova e é servida por uma bela e exímia tradução de Heloisa Jahn; tradução “sem tirar nem pôr”.
Pouca gente entre nós, mesmo aqueles ávidos leitores de tudo e até de poesia, conhece a obra dessa poeta de 97 anos que vive bulindo na sua Montevidéu natal. E, no entanto, há pouco tempo, em 2018, ela recebeu o Prêmio Miguel de Cervantes, provavelmente o galardão literário mais prestigioso da língua espanhola.
Ida Vitale publicou o seu primeiro volume de poemas em 1949, com La luz de esta memória. É considerada, pois, integrante da célebre Geração de 45, juntamente com alguns nomes que nos são mais familiares: Mario Benedetti, Juan Carlos Onetti, Ángel Rama. Com eles partilha de um mesmo universo de invenção poética — e até certo ponto o mesmo destino político (na oposição à ditadura militar) — mas a sua poesia se destaca sobremodo pela insistência permanente em toda sua obra nas invenções da linguagem.
Por exemplo, através do uso agilíssimo de metáforas, ora surpreendentemente claras como nesses versos: “Palidamente florescido/ o eucalipto suporta a sós, em seu lugar imutável,/ a chuva.” Ou, nesses outros, onde a imagem busca o despropósito surrealista que acentua a força descritiva do verso: “O simples vidro/ não fenício, meramente útil/ o frasco rústico reluz.”
Vez por outra se enuncia em aforismos de uma lição apreendida e que talvez nos caiba pelos tempos que correm: “agradeço a minha pátria seus erros,/ os cometidos, os que se veem chegar,/ cegos, ativos, nos seus alvos de luto./ […] /Sim, sou grata, muito grata/ por ter-me feito caminhar.”
A lírica moderna nos fala muitas vezes de maneira enigmática. Para Octavio Paz, a poesia seria como uma metáfora do instantâneo, a conjunção entre um olhar que arruma, por analogia, contiguidade ou diferenças certas imagens, sons ou palavras; e encontra na inteligência sensível do outro, o desejo cúmplice e a vontade receptora que os aprecie e compreenda.
Esse exercício exige atenção minuciosa para com o real na sua concretude, esforço verbal para esmiuçá-lo e traduzi-lo em encanto visual detalhado ao qual outras pessoas possam anuir voluntariamente, estabelecendo-se um circuito de cumplicidade mais ou menos intenso ou prazeroso entre autor e leitor. A palavra e a memória não estão comprometidas com uma “verdade”: elas explicam, examinam, procuram reconstituir, mistificam… mas também exaltam, intuem, celebram e consolam.
É neste sentido que a poesia moderna aborda com alguma frequência o tema da relação entre o poético e a linguagem, com a poesia fazendo-se mimética desse processo infindo, paradoxal, de “dizer o indizível”. Dá-se isso a partir do momento em que poesia e crítica se conjugam e a primeira passa a agir como um instrumento de análise de si, autodefinindo-se nos seus próprios termos. Este traço é marcante na geração literária de Ida Vitale e o que confere o prumo e a aparente impessoalidade nos seus poemas.
Para a obra de Vitale não há rota segura, tanto para gozar como para aprender. A surpresa da imagem exata vem às vezes da associação de um sentimento comum, o da angústia, por exemplo, com uma descrição dura e gráfica, boa de doer:
Angústia,
no centro de um sonho,
fechado túmulo, a única saída
é para o negro.
A angústia aqui não é o registro de uma ferida autobiográfica, mas a marca do humano. No entanto, a poeta, por mais construtivista ou racionalista que seja, moureja na penumbra: o poema navega entre a incompreensibilidade e o fascínio, mas busca o acolhimento, a identificação. Muitas vezes vai a contrapelo do ditado: procura atirar e acertar no que não vê. Trabalha sob o signo da insegurança. E, portanto, necessita que sua fala seja reconhecida e aceita como um tipo especial de fala. Não seria por acaso que Vitale pôs em epígrafe em um de seus livros a frase de Montaigne: Pode-se parecer tolo em tudo, menos na arte da poesia.
A História, com “h” maiúsculo, não parece tampouco deixar marca considerável na poesia de Vitale. Ela permanece firme no controle de uma língua permeada de significados abertos e sugestivos que se espalham e multiplicam na extensão de curtos poemas.
Talvez se possa dizer que nela predomina o olhar. Um olhar que transforma o mundo em vocabulário vivíssimo cujas palavras se entrelaçam, combinam-se, opõem-se, compõem-se, à sua mercê. Um mundo à mercê das palavras.
Apenas a cidade natal, esse lugar-comum universal do sentimentalismo respeitável — núcleo duro da memória formadora —, é capaz de fazer Ida Vitale desguiar, ainda que muito pouco, da postura condutora de sua poesia. Como neste poema, um lamento:
MONTEVIDÉU
Como chegamos a este inútil
marco de março rumo ao nada?
A sedução, não do abismo:
de poça quieta e seus insetos.
Pode o belo ser um vácuo:
o desolado fogaréu
sobre uma terra distraída
do que um dia teria sido.
E, como nas relações de afeto, a melancolia sem prevenir, pode dar lugar ao entusiasmo:
POSCÊNIO
Céus velozes de Montevidéu,
estratos de ouro e de loureiro,
rebocados pela mais alta rede,
mornos lilases lentíssimos
cocientes de sua luz multiplicada,
passam e nos envolvem
e nos distraímos com sua graça,
como brinca uma mão
entre areias que guardam
a eternidade em que não pensamos.