Quando Georges Didi-Huberman propõe uma permanência no dilema[nota 1], dentro do contexto da arqueologia da imagem, existe um movimento de inquietação que se sustenta a partir desse olhar. Para o teórico, no momento em que encaramos uma imagem, algo se torna ambivalente e, ao mesmo tempo, nos escapa. Na pista de uma dialética do visível, podemos analisar alguns textos literários por meio de modulações imagéticas, uma poética que se forma em constante relação com o registro do sentido. Escrever como um desenho, escrever como vestígio. Assim opera Sara Gallardo (1931–1988) em Eisejuaz, livro que chega, enfim, ao Brasil pela Relicário Edições, com excelente trabalho de pesquisa e tradução feito por Mariana Sanchez.
Gallardo empreendeu o projeto literário após uma visita à província de Salta, onde entrevistou, em 1968, um nativo wichí, etnia do Chaco Central e do Chaco Austral argentino. A conversa aconteceu em 1968 e foi feita para sua coluna na revista Confirmado. A escritora decidiu, então, transformar o relato em um romance no qual o foco principal é o personagem Eisejuaz, que foi batizado pelos brancos cristãos como Lisandro Vega. O romance, publicado em 1971, é uma espécie de narrativa contínua de fluxo da consciência de seu narrador. Comparado a obras de Guimarães Rosa, muito por conta das experimentações de linguagem e da ambientação e referência temática regionalista, Eisejuaz tornou-se um clássico tardio da literatura argentina. A obra de Gallardo, a princípio, não entrou na trama do Boom latino-americano, assim como a de tantas outras mulheres, por exemplo, Silvina Ocampo e Idea Vilariño. Agora, 50 anos depois, o romance chega como um meteorito para os leitores brasileiros: fragmento de outro tempo e espaço que aterrissa nesta terra como um golpe.
No prefácio da edição, Martín Kohan — romancista e ensaísta argentino — escreve sobre o pacto de leitura que a escritora estabelece: não se trata só de nós, leitores, crermos em outros mundos ficcionais possíveis, como em toda ficção, mas de aceitarmos que seremos deixados à deriva, sem nenhuma outra “crença” para pôr no lugar. “O que Eisejuaz oferece, em troca, é um estado de vacilação duradouro, que não se poderá — nem se desejará — resolver”, afirma. O romance foi dividido em nove capítulos, nos quais as identidades do narrador confundem-se com a sua espiritualidade e a presença do divino. Após receber um chamado do Senhor, Eisejuaz abandona os ensinamentos da missão protestante e inicia um tipo de errância mística, marcada pelo encontro com Paqui, um suposto enviado de Deus.
Assim, nesse estado de vacilação, somos atingidos por imagens de brigas entre mulheres no coração da mata, animais que cortam as cenas, conversas entre o narrador e personagens que compõem a dicotomia colonizadora do território, e interações entre Eisejuaz e esse homem que não sabemos muito bem se existe mesmo como antagonista do romance, ou se é sujeito de sua imaginação, um delírio que faz parte de seu mosaico de personalidades: “O Paqui sempre dormindo no seu canto. Tive um pensamento: ‘Já não vi esse homem nalguma parte?’”. Entre cada imagem montada por Gallardo, a ideia de um vestígio — que, se observamos, já começa na sua decisão pela escrita de um livro baseado em algo que lhe foi transmitido por outra pessoa —, nos ronda como leitores. O que, afinal, nos diz Eisejuaz?
Acompanhado por leituras de Walter Benjamin e Aby Warburg (entre outros), Didi-Huberman nos aponta a possibilidade de analisar as imagens através de certa sobreposição do tempo que se pode construir quando fitamos uma obra de arte com esse olhar sintomático, carregado de articulações, anacronismos e símbolos de sobrevivência. Dessa forma também se conjurou o romance de Gallardo, que se coloca como quem escuta, interpreta e remonta aquele universo cultural indígena com imagens que atravessam a memória social de nosso continente; os pedaços de dentes quebrados pela terra, os corpos que foram desmembrados por uma violência que se perpetua como formadora.
Eisejuaz nos fala do que não vemos porque ele viu tudo: uma terra a que se pertence, um corpo que se torna borda, os percursos espirituais de quem decide por fechar os olhos e enxergar o que não se tem documentado. Tudo que vive nessa terra, para essa terra é alimento[nota 2] e, desse modo, em prece eterna insistente, Eisejuaz conjura a proteção que seguimos a pedir, nós que aqui estamos, nos confins do sul do mundo: “Anjo da anta, faça-me duro na água e na terra para aguentar a água e a terra. Anjo do tigre, faça-me forte com a força do forte. Anjo do xuri, deixe-me correr e esquivar […]. Anjo do sapo-cururu, dê-me coração frio. Anjo do guaçuetê, traga-me o medo. Anjo do porco, tire-me o medo.”
NOTAS
[nota 1] Em O que vemos e o que nos olha, Didi-Huberman afirma um direcionamento do olhar, para obras de arte, no qual devemos mirar onde, aparentemente, não há nada para ver. O filósofo fala, em última instância, que devemos fechar os olhos e ver. Assim, torna-se possível insistir no dilema diante da imagem e questioná-la por meio de um rastro entre inquietação e ausência.
[nota 2] Verso da música Grande poder, de Déa Trancoso, presente no disco Tum Tum Tum (2006).