A poesia moderna se inaugura, antes de tudo, em um ato de fé numa linguagem viva, pulsante, como um sistema de possíveis iluminações. O progresso da ciência, o cinema, a fotografia, as máquinas: a modernidade chegou como uma força a fragilizar a ideia da poesia diante da lógica, da técnica, ordem e razão. E coube aos poetas daquela geração levar a linguagem até seu possível limite de ruptura. Nesse sentido, é muito comum que todo jovem poeta (ou ao menos aspirante a poeta) veja nascer o mito da poesia moderna - e consequentemente da própria juventude - a partir da rebeldia de Arthur Rimbaud (1854-1891).
É como escreveu Leminski, no ensaio Poeta roqueiro: se estivesse vivo hoje, “Rimbaud seria músico de rock". Ou mais: antes de ser poeta, como diria César Aira, deseja-se ser Rimbaud.
Os leitores podem se reencontrar com Rimbaud e sua máquina de delírios modernas, em nova edição bilíngue da editora Chão de Feira, que publica Iluminações / Uma cerveja no inferno, com tradução de Mário Cesariny (1923-2006). O poeta já teve traduções dos poetas Haroldo de Campos, além da versão completa de Ivo Barroso. Essa é a primeira vez que as traduções que Cesariny são publicadas no Brasil, preservando o português de Portugal e trazendo a ambiguidade para palavra saison (que pode ser tanto temporada ou um tipo de cerveja) no título. A publicação apresenta as duas principais obras do simbolista francês em ordem cronológica.
A questão posta em Iluminações / Uma cerveja no inferno, assim como fez de outra maneira modernos como Baudelaire, Mallarmé, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke e Fernando Pessoa, diz respeito a não conceber mais a linguagem como um sistema fechado, um quarto vedado ou um exercício téchne. É sua maneira de não ser simplesmente mais um artifício do mundo da linguagem técnica. Nos versos de Rimbaud há uma espécie de autoconsciência criadora que está interessada no que hoje temos como uma espécie de visão contemporânea de poesia: usar da linguagem para fisgar o que escapa, a luz que atravessa as rachaduras e ilumina esse quarto escuro, que entendemos como vida. Ou talvez, aqui caberia muito bem também a ideia turbulenta de “fixar vertigens”, como escreveu o poeta.
J’ai seul la clef de cette parade sauvage ("Só eu tenho a chave desta parada selvagem"), escreve Rimbaud no poema Parada. O simbolista parece sempre reiterar, a cada poema, que a poesia é sua forma única de experienciar o mundo. Única, singular e intransferível. Desde suas duas únicas obras, até o gesto dramático de abandono da literatura e o silêncio como solução radical para experienciar uma vida — ou quem sabe até mesmo uma obra — que não caberia mais nos livros. Ele se tornou a fantasmagoria perfeita dos seus próprios versos.
Assombro que marca gerações de outros poetas com um estilo elíptico e com imagens de mistérios e visões, do poema em prosa descritiva e em narrações, trazendo palavras que fogem aos dicionários e dando a elas um sentido único. Suas imagens são hipnóticas. Tamanho ecos de sua fantasmagoria hipnótica, que séculos depois muito bem serviu para uma geração rockeira, desde Cazuza — que canta nunca ter visto “Rimbaud pelas tantas/ Negociando escravas brancas”, como em em Só as mães são felizes — até cantora e poeta Patti Smith, que o tem como ídolo máximo, ao ponto de comprar uma de suas residências para restaurá-la.
Ele viajou a pé através de países europeus, uniu-se ao exército holandês, foi para a Indonésia e, no fim de sua vida, morou na Etiópia como um mercador — morreu em silêncio literário definitivo. Seja materializado num tipo de Bartleby, ou na efígie do que Susan Sontag descreve no ensaio A estética do silêncio, que faz parte do livro A vontade radical (1969). Rimbaud foi um desses artistas que utilizou esse seu silêncio para se libertar do cativeiro servil, que se manifesta nas relações “patrão, cliente, consumidor, oponente, árbitro e desvirtuador de sua obra”.
Adiante, o Pernambuco traz 3 traduções de Cesariny para o simbolista francês: três poemas de ruído, luz e selvageria.
TRÊS POEMAS DE RIMBAUD
[tradução: Mário Cesariny]
PARTIDA
Demasiado visto. A visão percorreu todos os ares.
Por demais sofrido. Rumor das cidades, à noite, ao sol, e sempre.
Por demais sabido. As estocadas da vida. — Ó Rumores e Visões!
Partida no afecto e no ruído novos!
MARINHA
Os carros de prata e de cobre —
As proas de aço e de prata —
Removem a escuma, —
Levantam os montes de silvas.
As correntes da terra,
E os sulcos imensos do refluxo,
Correm circularmente para leste,
Para os pilares da floresta, —
Para os fustes do dique
Cujo ângulo é ferido por turbilhões de luz.
PARADA
Sólidos tunos! Muitos deles exploraram os vossos mundos. Sem necessidades, e sem pressa de pôr à obra as suas brilhantes faculdades e a sua experiência da vossa consciência. Que homens maduros! Olhos vagos como a noite de estio, vermelhos e negros, tricolores, de aço crivado de estrelas de ouro: fácies disformes, chumbadas, enlivecidas, incendiadas: rouquidões brejeiras! O desfile cruel dos ouropéis! — Há alguns jovens — como olhariam eles Querubim? providos de vozes aterradoras e de alguns recursos perigosos. Mandamos-nos ao engate, para a cidade, ataviados com um luxo repelente.
Oh o mais violento Paraíso da careta raivosa! Nada que se compare com os vossos Fàkirs e outros trasgos cénicos. Em fatos improvisados ao estilo do sonho mau, representam lástimas, tragédias de malandrins e de semideuses espirituais que a história e as religiões nunca foram. Chinas, Hotentotes, ciganos, palermas, hienas, Molochs, velhas demências, demónios sinistros, somam os efeitos fáceis, maternais, a poses e carícias bestiais. Interpretariam peças novas, canções de meninas prendadas. Mestres jograis, transformam o lugar e as almas, e aplicam a comédia magnética. Os olhos flamejam, o sangue canta, os ossos dilatam‐se, as lágrimas e os fios vermelhos escorrem. A sua mofa ou o seu terror dura um minuto, ou meses inteiros.
Só eu tenho a chave desta parada selvagem.