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A memória muitas vezes é uma segunda chance. Ela é, antes de tudo, um lugar possível para os encontros e fundamentações de identidades. Contudo, resta também na memória o paradoxo de conservar a força de certos afetos, ao passo que pode ser “alterada”, como diria um verso de Waly Salomão, como um tipo de “ilha de edição”. Para o escritor Ocean Vuong, a memória é uma escolha: desvela um “eu” que é fruto de um passado, mas que escolheu não viver como sendo “apenas” consequência de seus traumas. O autor, que vem construindo sua constelação familiar e memorialista a partir da poesia no excelente Céu noturno crivado de balas, vencedor do Whiting Award e do T.S. Eliot Prize, estreou no romance em 2019 com Sobre a terra somos belos por um instante, publicado recentemente no Brasil pela Rocco com tradução de Rogério Galindo. Agora na prosa, Vuong utiliza seu vigor poético para narrar um coming-of-age marcado pelas feridas de um seio familiar vietnamita e seu primeiro amor em meio à construção de sua “americanidade” enquanto lugar de conflitos.

A princípio, Sobre a terra somos belos por um instante é uma carta. E cartas quase sempre possuem um caráter íntimo e privado, elas são endereçadas a alguém. Aqui, somos apresentados a um “você”, que tem sempre por intenção interpelar Rose, a figura materna. Contudo, logo na primeira frase do livro, nos deparamos com a primeira impossibilidade desse endereçamento: estamos a ler uma carta, uma confissão, mas, também, uma narrativa para uma mãe analfabeta, que nunca terá acesso às palavras que estão postas ali. Se estabelece, então, que o leitor é convidado a fazer mais parte de uma confissão e a fazer parte de uma relação que a própria figura materna de centralidade não tem acesso. E aqui temos um outro caráter do formato cartas: tudo o que é privado parece conter em si o desejo de violação.

No fim das contas, estamos a ler uma carta como um pedido de desculpas. Uma declaração de amor incondicional, e também de dor. O livro de Vuong surge a partir de uma leitura do clássico Diário de luto, de Roland Barthes. Porém, ao invés de escrever para um corpo doente e moribundo, Vuong escreve para uma mãe viva, que apresenta outra impossibilidade de leitura que não a morte: não poderá ler suas palavras, como fruto de um contexto de escolaridade marcado pelo subdesenvolvimento e guerra. Uma carta para uma mãe, uma imigrante vietnamita cujo avô era um soldado americano. “Um soldado americano comeu uma camponesa [vietnamita]. Por isso minha mãe existe./ Por isso eu existo. Por isso, nada de bombas = nada de família = nada de mim”, sugere Vuong em seu tratado silogístico, o poema Fragmentos do caderno, de Céu noturno crivado de balas (Âyiné), também traduzido por Rogério Galindo.

O romance de estreia de Vuong é sobretudo um tipo de metaficção. Ele expõe seus instrumentos e parte da memória como possibilidade de autoanálise. Dessa forma se expõe, como já havia se exposto como poeta, tanto abraça o melodramático e o melancólico, pois acredita no seu lugar como artista a narrar processos e frustrações que são estranhamente tanto da ordem do íntimo, quanto parte de questões globais. E nesse melodrama vive a produção de um jovem artista, que ganhou uma projeção meteórica e desde sempre se narra por uma poesia de delicadeza, ironias e entre-lugares, em uma potencialidade de ganchos que soam como refrões pop ou uma canção folk. É no próprio modo de narrar suas histórias enquanto pessoa queer que Vuong evoca nesses refrões um primeiro amor num emprego de verão em ambiente rural e extremamente heteronormativo, em que descobertas adolescentes dividem lugar com as experiências de bullying. Inclusive, muito comoventes são as passagens sobre as descobertas de sexualidade com um rapaz chamado Trevor, que em dado momento fala com extrema dureza que tinha o medo de “continuar sendo gay quando crescesse”.

Também é interessante pensar, a partir da ótica do romance de formação, o lugar dentro das narrativas de autorias contemporâneas sobre americanidade que o autor já ocupa e tende a merecidamente ocupar cada vez mais — tanto que Sobre a terra somos belos por um instante já tem perspectiva de ser adaptado para o cinema. O seu american way of life é, ao mesmo tempo, denúncia de falência e um espaço de acolhimento.

Nesse jogo de dualidades, Sobre a terra somos belos por um instante lembra a construção entre afeto e política da vida privada de obras recentes como Formas de voltar pra casa (2011), de Alejandro Zambra, A resistência (2015), de Julián Fuks, ou até a experiência migratória de Jonas Mekas no filme Ao caminhar entrevi lampejos de beleza (2001). Nestas narrativas, assim como em Ocean Vuong, é indissolúvel uma concepção da memória coletiva e da política contida nas tramas e afetos da vida privada. “Tudo que eu escrevia começava com talvez e quem sabe e terminava com eu acho ou eu acredito. Mas a minha dúvida está em toda parte, Mãe. Mesmo quando sei que alguma coisa é certa como um osso, temo que o conhecimento vá se dissolver, que não vá, apesar da minha escrita permanecer real. Estou nos separando de novo para poder nos levar para outro lugar — para onde, exatamente, não tenho certeza. Assim como não sei do que te chamar — branca, asiática, órfã, americana, mãe?”.

Utilizando de forma muito potente as ferramentas linguísticas construídas em sua produção poética, Vuong tece sua narrativa a partir de frases repletas de imagens, entre a dualidade de borboletas monarcas e granadas no Vietnã. Dura e sublime, justamente por estar interessada em enquadrar esses breves momentos nos quais as coisas escapam, esses breves momentos de beleza. É possível por algum instante insistir que há leveza em meio aos traumas. É possível a simultaneidade do bater de asas de uma borboleta que migra para fugir do inverno, de uma família fraturada por uma guerra lutada por homens e de uma vida repleta de relances de beleza. Ocean Vuong acredita que às vezes a família e o amor são como um campo de batalha. Contudo, não precisamos ser apenas a destruição das bombas lançadas.