Resenha Claudia Durastanti Divulgacao 2

 

 

No dia em que se conheceram, a mãe e o pai juram ter salvo a vida um do outro. Segundo ela, a história foi assim: caminhando em Roma, encontrou-o no parapeito da Ponte Sisto considerando a possibilidade de se matar. Como era surda, para fazê-lo mudar de ideia, gesticulou e falou alto. Não precisou se esforçar muito, logo ele deu um passo atrás. Mas talvez tenha desistido apenas porque não escutou nada do que ela disse. Também era surdo. Depois, ficaram juntos. Segundo ele, as coisas não aconteceram bem assim. A primeira vez que colocou os olhos nela realmente estava na região daquela ponte, só que em frente à Estação Trastevere. Comprava cigarros quando a viu sendo agredida. Botou os delinquentes para correr e começou a conversar: perceberam que falavam a mesma língua, “feita de engasgos e palavras ditas alto demais”. Depois, ficaram juntos.

Quem conta as versões é a filha do casal, narradora de A estrangeira, recém-lançado pela Todavia com tradução de Francesca Cricelli. Só que essas também são as histórias dos pais de Claudia Durastanti, autora do livro (quarto romance da autora, único editado no Brasil) que lhe rendeu comparações a Natalia Ginzburg e Joan Didion, e que a colocou entre os finalistas do Strega, principal prêmio literário da Itália. Trata-se de auto-ficção? Não e sim. E as histórias conflitantes narradas pelos pais, que Durastanti classifica como sua própria mitologia familiar, são um aviso dessa incerteza. Nesse livro, tudo é movediço. Buscar uma classificação rígida para ele seria tão errado quanto esperar descobrir qual das duas histórias — se a do pai ou a da mãe — é a verdadeira.

Realmente, há ecos de Ginzburg nas descrições sucintas e bem humoradas que Durastanti faz de personagens e situações. Sobre a mãe e o pai, ela diz: “ele tinha cabelos castanho-claros, a boca carnuda e traços nobres, ela mal chegava na altura dos ombros dele e parecia saída de uma prisão florestal para guerrilheiros”. Mas a maior semelhança com Ginzburg está no modo como Durastanti usa a própria experiência para construir um mosaico de textos que podem ser lidos ora como pequenos contos, ora como pequenos ensaios, mas que, em conjunto, ganham a forma de um romance. Separado em capítulos curtos agrupados em conceitos como “Família” e “Viagens”, aos poucos o livro traça uma trajetória, localizando-a no tempo e no espaço e oferecendo um panorama geopolítico não só de uma vida, mas de boa parte da geração que cresceu nos anos 1980.

Durastanti nasceu no Brooklyn, em Nova York, em uma família italiana, e emigrou, ainda na infância, para Basilicata. O que poderia ser uma mudança radical, revela-se mais surpreendente pelo que há de comum entre os dois lugares. A certa altura, diz: “Na Basilicata, encontrei a mesma dispersão dos subúrbios americanos, o mesmo desejo das minhas primas do lado de lá do oceano, de me entrincheirar num quarto, sem um lugar aonde ir além de um shopping center ou de um porão onde se entorpecer”. Anos depois, na universidade, quando entra em contato com autores que estudaram as relações familiares no interior da Itália, comenta: “Muitas coisas haviam ocorrido desde os anos 50: os códigos tinham mudado, mas já que eram bem semelhantes aos dos adolescentes americanos, provocavam tédio em qualquer antropólogo”.

A estrangeira. O título pode enganar. Ainda mais quando se descobre que a narrativa fala sobre uma vida em trânsito — dos EUA para a Itália e depois para a Inglaterra, onde a autora vive hoje. O livro, contudo, tem muito mais a ver com outras acepções da palavra “estrangeiro”. Durante a leitura, mal pensamos nas agruras da migração ou nos choques culturais. O que vem à mente é uma sensação vaga de não-pertencimento tão característica dessa geração dos anos 1980, inundada pela pasteurização da vida: “Ninguém dirá de mim ou dos meus amigos que se mudaram para a Inglaterra que morremos a dois mil quilômetros do lugar onde crescemos, e isso porque não foram os ventos da fronteira que nos empurraram, não conquistamos terras desoladas ou inventamos poços necessários para extrair água potável, mas nos acomodamos em cidades já superpopulosas, trabalhamos em lugares com o mesmo perímetro das casas que dormimos na umidade e na incompreensão dos proprietários”.

Criada pelos pais deficientes auditivos, a linguagem é também um dos temas centrais de A estrangeira. E, contraditoriamente, quanto mais Durastanti se embrenha nas palavras, mais tem a sensação de não conseguir dizer. A própria narrativa, conforme avança, deslocando-se da vida familiar para a vida pessoal da autora/narradora, torna-se caudalosa, circundando ideias, conectando conceitos, explicando sentimentos, sem nunca conseguir chegar a uma conclusão — tudo a ver, aliás, com o gênero cinzento que o livro ocupa. “Não sei que substância existe nos meus pais: só sei que eu não a tenho em mim. Conquistei e perdi toda a vantagem com a linguagem, trocando uma palavra por outra”. Nesse sentido, o livro é também uma reflexão sobre o silêncio: dos pais, dela própria e de uma geração.