Resenha Henrique Provinzano Amaral Divulgacao

 

Como escrever um mundo que não existe mais? Diante dessa matéria passada, o poeta se assemelha ao flâneur das Passagens de Walter Benjamin, o flâneur conduzido pela rua “em direção a um tempo que desapareceu”. De modo semelhante, é isso que parece buscar Henrique Provinzano Amaral (foto) em seu livro de poesia Quatro cantos, publicado no ano passado pela editora Patuá. À procura de tempos e espaços que se multiplicam e se entrelaçam em meio à ambiguidade que o título do livro nos apresenta, o poeta se constrói como um explorador que está, por acaso, na mesma rua do flâneur benjaminiano.

O livro é de fato dividido em quatro cantos, como se fosse uma epopeia. Ao se deparar com o índice, o leitor pode ter a sensação de que o mistério do título, em vez de se resolver, só aumenta. Essa sensação é compartilhada pela tradutora e crítica literária Caroline Micaelia no posfácio do livro, em que diz que “juntas, essas duas palavras, primeiro texto que nos é dado a ler, talvez tenham despertado no leitor, como em mim, o instinto de problematizar um ponto de partida que, pela ambição, soa tão atraente quanto arriscado”.

No “primeiro canto”, chamado “antepassados”, encontramos dez poemas em que, em vez de canto, encontramos ausência de som na parte I: “Começo procurando/ nos galhos mais altos/ o silêncio”. Os primeiros sons, os sons primordiais do mundo de Quatro cantos, surgem aos poucos na parte II: “ um/ a um/ os primeiros latidos” nos aproximam do animal que surge por etapas, criando-se com ele uma noção de tempo. No entanto, quando se pensa que o espaço e o tempo já estão conquistados, “olho em volta/ mas em volta vejo um mar/ de cana-de-açúcar/ e não há mais árvore/ nem cão à vista”. Tudo se altera em crescente violência, e entre som e silêncio o animal se reconfigura no poema. Na parte VI desse mesmo canto, além da vida e do mundo desses antepassados, a morte e a família surgem como tópicos. Quando “morrer/ é o mesmo que pertencer totalmente”, ser ancestral de alguém pode nos levar a concluir que “toda família é uma mina de sangue”, numa agressividade originária que é nas partes seguintes amenizada por afetos mais positivos.

Já o segundo canto é intitulado “poemas do chão da cidade” e contém 13 poemas, sendo a segunda maior parte do livro. Aqui os poemas, em vez de serem enumerados, ganham nomes próprios e espaços variados, onde “atravesso, transeunte,/ o tráfego/ por cima da passarela”. Nesse ambiente, a morte continua à espreita: “um anjo de Piva adverte/ do alto de um prédio:/ nem todos que têm asas voam/ nem tudo que tem sede bebe/ mas eu miro o moço/ com a corda do tédio/ amarrada/ no pescoço —/ o grande nó na goela/ de todos nós”. A coletividade dessa angústia nos faz pertencer à família, mas também à cidade: “e saio da viela/ com os olhos/ torpes/ postos no chão/ na metrópole, irmão,/ nem mesmo a morte/ é paralela”. Quando chegamos em Ocupação, poema dedicado às famílias ocupantes do Edifício Wilton Paes de Almeida, que pegou fogo e desabou em 2018, lemos como estão “as tendas dos semteto/ todas acesas/ sob um céu sem estrelas”. A condição das vítimas expõe a existência do “sujeito sem país/ o cidadão nu/ na cidade do Paissandu”, referindo-se ao Largo do Paissandu, em São Paulo. Em seguida, protestos, milícias e religiosos na política começam a tomar conta desse espaço que suspostamente é para todos, como em Ato ou efeito, de forma que parecemos perder nosso próprio lugar.

No terceiro canto, nomeado “cantares do amor e da carne”, temos 14 poemas em que a dimensão da poesia se aproxima da intimidade. Retomam-se temas do primeiro canto, como o silêncio e a violência, mas também aspectos mais afetivos, como em Diurno: “Escorado no solo com o braço esquerdo/ estico o direito e encontro/ teu queixo/ dourado/ (despojo de uma estátua antiga/ ou de argivo presságio)/ então aliso tua barba/ como quem afaga as crinas/ de um cavalo alado —/ o cocheiro da carruagem do sol/ ou simplesmente/ um Apolo viado”. Imagens e referências próprias da cultura clássica e medieval como essa despontam em um ou outro verso, como no poema Cantiga, em que, além de se referir à cantiga de amigo, forma poética trovadoresca, também se dialoga com o amante “com todo ardor” e se pede: “recorda teu querido/ Catullus/ e vem, meu amor,/ vamos amar em versos curtos”. Progressivamente, o amor nos poemas de Amaral se torna mais carnal, como em Corpus, em que o interior do corpo é “feito um livro grosso/ — um atlas de anatomia —/ abro as carnes do peito/ e/ sem receio/ olho os órgãos lá dentro”.

No quarto e último canto, o dos “poemas da opacidade”, com epígrafe de Édouard Glissant e apenas três poemas, o que temos é uma espécie de revisão dos temas anteriores. Em google street view, a experiência de deslocamento no tempo e no espaço tão explorada antes agora parece mais dimensionável, vivenciada por frames. O Haiti, presente por referências geográficas e poéticas ao longo do livro, também aparece em Porto Príncipe e Salvador, baseado numa hipótese sob forma de canção de ninar: “se essa baía fosse minha/ eu talvez chamasse ela/ baía de Toussaint/ mesmo sabendo do risco/ do ridículo/ e que nem todos os santos/ cabem em Todos-os-Santos”. Esse sonho de integração de polos da cultura e da resistência negras é personificado em René Depestre, poeta haitiano que, em 1956, andava pelas ruas baianas e é muito citado em Quatro cantos. Em paralelo, o último poema, Luzia, retoma temas do primeiro e do terceiro cantos a partir de uma descoberta do desconhecido: “No escuro/ os olhos demoram alguns segundos/ talvez minutos/ para reaprender a ver”. Os móveis, os corpos e as luzes se introduzem no poema, e estabelece-se um cenário de nascimento por uma relação sexual.

Ao fim do quarto canto, “como quem morre”, parece que nos vemos de novo no silêncio da parte I do primeiro canto, num ambiente sem a oportunidade de se conquistar o tempo desaparecido. Em vez de falsa promessa épica, Quatro cantos nos faz contemplar um atlas de caminhos por possibilidades poéticas que se revelam cada vez mais múltiplas e, ao mesmo tempo, labirínticas.