O novo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, A visão das plantas, publicado no Brasil pela editora Todavia, é um tratado sobre o mal. Não é uma sentença ou julgamento, é um olhar atento e honesto para o mal. Há três chaves principais para se pensar este livro: o tema, as perguntas que ele evoca e como o narrador escolheu as palavras para realizar a espantosa beleza desse texto.
O mal está no corpo e nos gestos do protagonista, um personagem recortado da história e que se multiplica em tantos. Capitão Celestino foi um corsário que levou a vida nos navios negreiros, combatendo rebeliões com a fúria de matar, transportando homens, mulheres e crianças amontoados como mercadorias, sem qualquer alívio ou misericórdia.
Quando chega à velhice, o Capitão Celestino volta para a casa de sua infância onde ninguém o espera, mas ele, sim, espera a morte. A habitação, uma personagem importante do livro, está vazia há tempos. Por fora, as ervas teimosas do jardim seguem vivendo, alheias ao curso da história. Não sabem absolutamente nada sobre o que a humanidade faz do seu fado, mas entendem tudo sobre o impulso de medrar — este que devemos sempre reaprender. No desespero do Capitão por agarrar-se ao único fiapo de vida possível, ele decide dedicar seus dias a cuidar das plantas.
Em toda situação de guerra e conflito existem os homens que mandam e os que executam atos de violência. Não há como medir onde está a maior crueldade, são todos conscientes do mal, partidários dele, justificam-no por uma causa política, crença, delírio ou ambição. O mal existe em todas as almas mas, em algumas, domina a vida inteira.
O Capitão Celestino personifica um pedaço doloroso da história que liga Portugal ao Brasil e ao continente africano. Um arquétipo, um espelhamento dos militares dos regimes ditatoriais da América Latina; dos torturadores destes regimes; dos empregados dos campos de concentração nazistas; dos feitores forros do Brasil colonial e de todos os que escravizaram e torturaram; dos homens armados em guerra que matam sob o duplo signo da obrigação e do prazer.
A solidão do personagem leva a uma associação possível com O outono do patriarca (1975), de Gabriel García Márquez, mas neste há uma caricatura da saudade do poder — um ditador que sente falta do tempo em que viveu a ilusão da onipotência. O Capitão Celestino, ao contrário, parece tentar esquecer, mas é inútil.
A visão das plantas é um tratado sobre o mal, mas também sobre a morte e suas perguntas: o que é o arco de uma existência? O que são as escolhas e onde impera destino? O que acontece com quem pratica o mal?
Não há Deus nessa história; o Capitão Celestino renega qualquer possibilidade de existência invisível perto de sua vida. Até o ponto em que ele ainda é capaz de acreditar que o homem pode controlar tudo, não há nada disso. Até que chega a menina holandesa.
A densidade desse texto tão breve, um livro de menos de cem páginas, está em muitos aspectos. O enredo é isso mesmo: o homem cuidando desse jardim, o fim de uma vida e as marcas que ficaram dela. Mas há um porão de almas sob as raízes destas flores e deste verde exuberante. São as mesmas mãos: as que mataram, as que ressuscitaram as plantas. São exatamente as mesmas mãos. Apesar de ser a fabulação sobre um personagem só e uma experiência individual, o livro evoca uma questão coletiva, dolorosa e profunda.
Quase ao final do livro, ao explicar o ato de uma personagem inesperada que passa a conviver com o Capitão Celestino na casa, o narrador diz que “o que se ata em vida na morte não se desata”. E esta é uma das frases que expandem a dimensão do texto para uma amplidão desmesurada, evoca as feridas abertas, as vidas perdidas, as coisas que mancharam a história e das quais nunca vamos nos recuperar, como a escravidão, porque ainda estão todas aqui, atadas.
Com este trabalho, Djaimilia Pereira de Almeida consolida-se como uma voz que pode falar por muitos, mas quase em silêncio, sem julgamentos, alardes ou reparos. Há uma elegância apaixonante nesse texto. O primeiro e o último parágrafo do livro dão a real medida deste equilíbrio, onde nenhuma construção poética sobra — ao contrário, é tudo sempre no tom apropriado de um narrador consciente de que a vida nunca é uma coisa só. Muito menos as pessoas, os vivos e os mortos, o capitão, o padre, a cozinheira, a menina holandesa que nada enxerga. Estamos imersos nos fatos do passado tanto quanto nos mistérios. Não sabemos de nada. A visão das plantas, talvez, seja a mais precisa de todas.