De servente de pedreiro a escritor, a travessia vivida pelo jovem gaúcho José Falero se imprime em seus textos como traço de estilo e escolha temática. Isso quer dizer que desde seu livro de estreia, os surpreendentes contos de Vila Sapo (2019), a que se seguiu quase de imediato o romance Os supridores (2020), o autor vem se dedicando à criação de uma linguagem própria, perpassada pelo lugar de fala no qual situa as vicissitudes de personagens da periferia de Porto Alegre, sendo ele mesmo morador da Lomba do Pinheiro, onde também “havia pessoas com nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração”, para repetir a citação irônica do narrador do romance.
Incentivado, ou melhor, desafiado pela irmã, Falero descobre os livros e o prazer da leitura de tudo que lhe caía nas mãos: romances antigos e de aventura, livros didáticos e, depois, teoria da literatura e gramática. O contato intensivo com a palavra escrita, por certo, suplementou o mundo oral em que vivia, resultando na criação de um modo de escrever que conjuga gíria local e norma culta, dosadas de forma artística peculiar: uma arte abertamente periférica e, por isso mesmo, portadora de outra perspectiva — descentrada — do mundo, diferente da que o sistema literário dominante costuma referendar.
Um novo realismo? Uma autoficção? Uma realização pós-autônoma? Os rótulos dizem e não dizem muita coisa diante da singularidade do livro que demanda um leitor singular, também ele outro, periférico, indisciplinado. A primeira sensação ao ler obras como Os supridores é a de compartilhar uma experiência vivida à beira do abismo que o país das “vilas” gaúchas traduz como “um pedaço de inferno”, com o alto poder de universalização do relato, embora fincado em circunstâncias locais e datado com rigor. Dia, mês e ano das ações são disseminados por todo o texto e lhe dão ares de depoimento prestado à polícia como se ela ouvisse cada um dos personagens. Em coro, formam a tessitura narrativa em que o comentário se junta à ação narrada no momento mesmo em que é vivida.
A trama do romance é arrebatadora, arrojada. Os amigos Pedro e Marques, funcionários de um supermercado, têm a tarefa de suprir as prateleiras dos produtos à venda, trabalho cansativo, tedioso, mal remunerado. Para mudar de vida ante o “espetáculo da desigualdade e da injustiça” do dia a dia, resolvem vender maconha, atividade que vai se ampliar e se mostrar cada vez mais lucrativa, a ponto de terem de recorrer à ajuda e associação dos amigos Luan e Roberto, além da mulher de Marques, ironicamente chamada Angélica, que também faz parte do grupo. À medida que o negócio vai se ampliando, passam a vender a mercadoria às escondidas no supermercado, sob um rígido esquema armado por Pedro, uma sorte de líder intelectualizado do grupo e decerto — mais uma ironia — alter ego do escritor.
A relação hierárquica dos funcionários no supermercado acentua as relações econômicas assimétricas que propiciam o lucro abusivo e, em consequência, a violenta exclusão que cabe a eles, funcionários, ao contrário do que acontece no grupo vendedor de maconha, em que a distribuição do trabalho e do lucro é a mesma para todos os seus participantes. O confronto das duas posturas não é mero pano de fundo da relação dos personagens, mas o que mobiliza sua atuação no desenrolar da trama e a diferencia de demais livros de ficção similares, publicados nos últimos anos e de semelhante proveniência social de seus autores.
O valor da mercadoria — sublinharia Pedro, lembrando Marx — na periferia da periferia do capitalismo avançado estende-se aos diversos níveis do relato e dá a seu título viés generalizador. “Suprir”, segundo o dicionário, é “prover”, “substituir”, “remediar” e “inteirar”, acepções a que a narrativa cumpre realizar de modo diverso, com certeiras doses de humor, apesar da consciência proverbial de quem narra: “Sempre que a realidade mete o pé na porta, não há sorriso que não trate de fugir pela janela”.
Realidade: mais uma mercadoria do supermercado, os jovens supridores se impõem a tarefa de, pelo comércio ilegal, alcançarem um outro estatuto e novo registro de nascimento que apague a origem e, paradoxalmente, a confirme como resistência e insubmissão: “mano, eu sou uma flor que nasceu num lixão! Eu sou foda! A gente é foda! A gente é carne de pescoço!”. Enfim, o livro desejado acaba sendo escrito à medida que o leitor vai lendo: “Assim raciocinando, escreveu o seguinte, no alto da primeira folha do caderno: ‘Os supridores’”, conclui o narrador.
O romance de José Falero é antes de tudo um “conto de fadas” no qual se denuncia que a única preocupação — perversa, para dizer o mínimo — da gente que nasce no castelo “são os monstro abominável que vive longe do castelo: monstro como eu e tu”, diz Pedro em conversa com Marques. A novidade do livro e sua indiscutível relevância artística vêm da sua capacidade de traduzir pela palavra escrita esse conto de fadas ao avesso e, assim, suprir a literatura atual do que nela vem se afirmando como proposta narrativa desconstrutora e, no caso, firme testemunha de acusação da tragédia brasileira.