Vila Matas resenha mar.21

 

Foi um resto de vida em silêncio para o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), após a publicação de Pedro Páramo (1955). Digo, silêncio literário. O romance alçou o escritor a um patamar de prestígio imediato e alucinante. Tanto é que o “boom” da literatura hispano-americana dos anos 1960 e 1970 precisou inteiro “visitar” Comala, a cidade fantasma criada por esse autodidata de origem rural e com diferentes versões sobre sua trajetória pessoal, que vivia um paradoxo: à medida que ficava mais famoso, sua produção diminuía em volume. Até o ponto em que o silêncio literário foi definitivo. “É que morreu meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias”, desculpava-se sempre que ouvia a pergunta “o novo livro é pra quando?”. O mexicano é possivelmente um dos grandes representantes do arquétipo do Bartleby.

Essa “classe”, ou “praga contemporânea”, engloba todos aqueles que, após alguma publicação, desistem da literatura. Seja por conta de uma crise existencial, pela suposta morte de um ente querido ou mesmo pelo suicídio. Os vitimados da síndrome são os protagonistas de Bartleby e companhia, romance do catalão Enrique Vila Matas, que é reeditado no Brasil pela Companhia das Letras. A tradução é de Josely Vianna Baptista e de Maria Carolina de Araújo.

O arquétipo, ou melhor, o fantasma usado por Vila-Matas, popularizou-se a partir da novela de Herman Melville (1819-1891), Bartleby, o escrivão (1853). De grito existencial à apatia diante da hierarquia de trabalho capitalista, o “I would prefer not to” ("Preferia não fazê-lo") sempre dito pelo protagonista, se tornou o mantra daqueles que seguem os caminhos sossegados do não. Uma reza para os que aceitam/decidem simplesmente não ser. E Bartleby e companhia é sobre o que a literatura é quando os autores decidem/aceitam não ser. Desde Hofmannsthal, passando por Rimbaud, Walser, Rulfo, Pynchon e Salinger, a "galeria Bartleby" é vasta. Com gestos bastante borgianos, somos apresentados a um narrador que costura sua trajetória como escritor e posteriormente Bartleby, com notas de rodapé sobre esses desistentes da literatura, montando uma espécie de bestiário das letras. Na epígrafe do romance, o filósofo francês Jean de La Bruyère sentencia: “A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem; o de outros consiste em não escrever.”

Vila-Matas nos permite pensar esse Bartleby como uma doença e o deixar a literatura como um sintoma. É um artifício criado para preencher os vazios literários e a ferramenta de mapeamento dessas biografias, histórias suspensas, por onde a literatura escapa viva. O que faz reverberar a todo momento a ideia de que, goste ou não, a biografia de um escritor está nas nuances de seu estilo. No caso do próprio Vila-Matas, um interesse fantasmal por esses desaparecimentos e ausências, presentes nas suas obras repletas de questões de teoria da literatura e crises de gêneros textuais, que ganham uma nova dimensão aqui, por se tratar de uma espécie de rastro da própria ideia de autor e escritor.

Aqui, o autor, ou seja, essa figura considerada o contingente da enunciação, perde sua força na construção humanista de uma ideia de legado, genialidade, existindo apenas em função do trabalho escrito. De certo que existem algumas diferenças entre o ser autor e o ser escritor, o que fica bem demarcado na construção de Vila-Matas. O autor é tão uma pessoa criada pelo escritor quanto os personagens de seus livros. É uma postura assumida e, por isso, não seria de se estranhar que ela pode ser abandonada como qualquer outra narrativa e é isso que fazem os Bartleby.

Neste sentido, o livro consegue formular com qualidade tanto um caráter narrativo quanto uma força quase ensaística de se pensar uma ideia muito contemporânea de autoria e arquetípica de escritor. A negação é existencial. E ela ganha novos contornos políticos e morais se pensarmos o nosso contexto de exposição ao luto, de questionamento do lugar da arte em um contexto pandêmico e de precarização das atividades artísticas. Nos meandros da própria ideia sobre a importância de se produzir arte — ainda mais literatura — simplesmente abdicar da escrita é um ato carregado de potências destrutivas e construtivas.

Bartleby também assume outras potencialidades se pensarmos no vigente ethos neoliberal de trabalho, nas demandas exaustivas e no universo laboral cada vez mais assíncrono. A partir das políticas do Bartleby, o filósofo Slavoj Žižek, grande adepto do “I would prefer not to”, reimagina potências construtivas do não, no livro Violência (2007), a partir da frase: “às vezes nada é a coisa mais violenta a se fazer”. Preferir não fazer significa, de várias maneiras, uma total falta de compromisso com o sistema, em qualquer forma e maneira. É a absoluta negação e ímpeto em assumir o conforto em seus próprios termos, que torna o Bartleby quase que uma figura emancipatória na contemporaneidade.

Para o filósofo franco-magrebino Jacques Derrida, "escrever é retirar-se". Então o lugar do escritor e a sua relação com a literatura fazem parte de um processo emancipatório da linguagem através dela mesma. “Ser poeta é saber abandonar a palavra. Deixá-la falar sozinha, o que ela só pode fazer escrevendo”, deliberou o filósofo. Foi exatamente isso que fez à risca um dos protagonistas e apogeu dos Bartlebys, o francês Arthur Rimbaud (1854-1891). Libertino e inquieto, escreveu duas obras primas da literatura e desistiu dela ao completar 19 anos, quando foi viajar três continentes até morrer de câncer aos 37 anos. Em uma espécie de belo clichê e síntese existencialista da narrativa que fascina Vila-Matas nesse livro, pode-se articular que às vezes o querer literário é tudo aquilo que escapa, o que não consegue ser “represado” pela vida. E vice-versa.