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1.

Este livro de Maria Lúcia Alvim, publicado no ano passado, pouco antes de morte da escritora, talvez já esteja nas mãos dos leitores no momento em que escrevo. O motivo da suposição se apoia não apenas no interesse despertado pelos poemas, mas também por eles se equilibrarem num enredo inesperado. Pois quem poderia calcular que Maria Lúcia entregara os originais de Batendo pasto a um amigo, para que só fosse publicado após sua morte? Mesmo porque o livro já vinha anunciado em Vivenda, publicado pela coleção Claro Enigma em 1989, idealizada e editada por Augusto Massi. Seria então pura paixão pelo jogo? Mas isso também não é novidade, pois já havia acontecido com alguns escritores, a exemplo de Kafka e Cesário Verde. À hora da morte — dizem — ambos pediram a amigos que destruíssem seus escritos. Imaginem o susto. Pois bem, eles desobedeceram. Será que aqueles peritos nos segredos do coração humano acreditavam ainda em promessas?

Quanto à obra de Maria Lúcia, acho que vale a pena comentá-la, porque esses poemas escondidos atravessaram um longo período até sua publicação, graças ao empenho de três poetas, também desobedientes, para o nosso bem. O primeiro, Paulo Henriques Britto, a quem fora confiado o texto inédito, escreve a orelha do volume, além de nos oferecer uma análise rigorosa, de um poema atordoante:

Meus olhos são como dois bacorinhos
                     feridos de morte

Os outros dois poetas, Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, introduzem Batendo pasto com dois ensaios vigorosos, em que procuram criar hipóteses para tanto silêncio, fazendo um levantamento da vida e obra da escritora, além de responsabilizarem a crítica pelo esquecimento da poeta. Por sua vez Gontijo assinala o amplo leque das experiências formais desdobradas por Alvim, acrescentando as ocasiões em que sua obra recebeu comentários, em que fez parte de antologias — e não só da Claro Enigma, que na seção “Sobre o autor” enfileira ensaios ou impressões de Brito Broca, Fernando Py e Darcy Ribeiro, entre outros autores respeitados; Gontijo aponta outras recolhas no Brasil e no exterior, acrescentando a indicação de artigos e de uma dissertação de mestrado na UFMG, que merece publicação[nota 1]. Francamente, não é pouco em se tratando do Brasil. Faltou ainda uma menção à excelente orelha de Vivenda, escrita por Berta Waldman, a que voltarei no comentário que se segue.

2.

Não é difícil perceber que Maria Lúcia é uma poeta da medida. Ela vai das formas tradicionais ao verso livre, em suas variações de metro e ritmo, aperfeiçoadas pouco a pouco, e instruídas pelo conhecimento da música, além das possibilidades formais das colagens a que se dedicou enquanto artista plástica. Às vezes essas virtualidades parecem se insinuar em alguns poemas, criando soluções inesperadas. Mas a própria poeta afirma sua força e independência, sua disposição ao enfrentamento:

Não quero dominar a natureza.
[…]
Dos poentes farei meus aliados.
Das tempestades minha camarilha.
(segundo poema da seção “Mímese”, de Batendo pasto).

A experiência com outras línguas e literaturas, principalmente a francesa, surge muitas vezes compondo rimas entre idiomas diferentes, que assim parecem íntimos entre si, curiosamente semelhando liberdade ou naturalidade o que, na poesia, é sempre forma construída. Vejamos como exemplo as estrofes salteadas abaixo, retiradas da inventiva (também lúbrica?) "Litania da lua e do pavão", composta por uma enfiada de dísticos:

(10) Ó impromptu
       Do déjà vu

(15) De déu em déu
       Laudamos Te

(64) — Serra serrote
       Bunda barrote

(75) — Psiu esmeril
       Ainsi-soit-il

(100) — Tu repolhuda
         Tu batatuda

(105) Pela tardinha
         Subo p’ro pasto

(106) Sozinha

São 106 estrofes e organizei a amostra acima segundo uma ordem mais ou menos arbitrária. A última estrofe, com apenas uma palavra indicando solidão, pode parecer estanha para o final de uma ladainha, meio parecida no conjunto com um “book of nonsense”. O poema merece uma análise detida, que não pode ser feita aqui.

Maria Lúcia foi sempre fiel às formas fixas, principalmente ao soneto — de sua estreia com XX Sonetos em 1959, até Batendo pasto do ano passado. Na seção deste livro intitulada “Cinco sonetos encapuchados”, todos são compostos em decassílabos. O segundo deles surpreende ao ecoar uma cantiga de roda. Aliás essas duas formas, o soneto e a cantiga de roda, isto é, o erudito e o popular, estão sempre presentes em epígrafes e poemas, problematizando o conceito de tradicional atribuído com frequência a Alvim.

Às vezes, uma palavra ou outra altera o clima, como “vadia”, ou “caveira” no último verso desse segundo soneto; podemos mesmo considerá-las agressivas (mas não casuais) numa canção de roda que vinha sendo anunciada desde o começo, pelas repetições enoveladas das estrofes, lentas, rodando de mãos dadas, enquanto o eu que narra insiste no próprio afastamento, acabando por esclarecer seu lugar de morta.

[...]
Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim

No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando eu fui caveira, eu era assim

Nada mais provocante, imitando o terror, do que essa “caveira” no último verso.

Em sua orelha a Vivenda, Berta Waldman aponta um núcleo de tensão e dissonância na poesia multifacetada de Maria Lúcia Alvim, a partir de um sujeito lírico esgarçado, transitório, que precisa encontrar um ponto de apoio; essa situação é também revelada na figuração poética, “que vai do pontilhismo, que busca colher o momento fugaz em que as cores cintilam, a um construtivismo de composição rigorosa, limpa e transparente”. Essa contradição perturba o conjunto, que recorre à forma para se equilibrar, frequentemente ao soneto.

(A tempo, é bom lembrar que um bom soneto faz quem pode, não quem quer, porque exige senso de equilíbrio, bom ouvido, muita paciência, muito tempo e talento, que ninguém explica direito o que seja. Já ia esquecendo: “Por fim, o acaso./ Sem o qual, nada” [nota 2])

Além disso, Batendo pasto introduz novidades na intensidade das falas, chegando à nudez de expressão no caminho do erotismo, que vem temperado às vezes pelo toque irônico, conforme observou Clara Alvim. Parece não haver limites para a experimentação, o jogo, a provocação.

A isso acrescentamos o amor à terra, a pertença ao solo e a sua história, muito evidente no Romanceiro de Dona Beja, até pela epígrafe de Guimarães Rosa (“Eu sou donde eu nasci”). A diferença é que em Batendo pasto vem à tona o trabalho, a começar pelo título. Bater pasto é o corte do capim (também da cana) sendo batido pelos trabalhadores com foice ou facão em movimentos harmônicos para não se ferirem. O que é cortado é guardado em silos para alimentar o gado nos momentos de precisão. Não tenho dúvidas que esses novos motivos tenham sido inspirados também por Zé Pavão, companheiro merecedor do ardente soneto da seção “Coluna”, assim como da dedicatória do livro.

Vale a pena comparar Batendo pasto com poemas anteriores, com os “Sonetos Ornamentais”, por exemplo, parte de Coração incólume, de 1968, em que o touro é “meigo bisonte”, as colchas de crochê brilham à luz de velas e todo o clima condiz com o verso introdutório de Jorge de Lima (“Musas de infância ungiam meus sentidos”). O despertar do sexo não pode faltar, descrito no soneto III, numa rememoração delicada:

Na febre adolescente sufocávamos
mariposas no peito e as coxas claras
tisnavam-se de sangue ao sol das tardes.
              Brinquedos de amor tinham o talante

mistério dos pomares: cabeludas
douradas, suculentas, misturavam-se
ao sumo de carinhos prematuros.
(de Vivenda, p.275)

Batendo pasto bate em outra tecla, o sexo vem unido ao trabalho, que em geral é expulso dos motivos amorosos. Afirmá-lo assim é uma grande novidade. No poema a emoção surge na variedade de ritmo, da disposição e medida dos versos.

O amor
                   soltou do meu corpo
          como o tamoeiro da canga
                   desgovernou
          todo um tempo
                                           de amanho

Longe do campo, dá trabalho entender, mas vale a pena: “tamoeiro” é a peça central do carro de bois, que se prolonga até a canga que prende os animais. Se desgovernado, desgoverna-se o amanho, isto é, a lida com a terra.

Assim, se podemos achar graça da comilança-piada de Lambujem (“Meninos, bati/ Madame Bovary”) experimentamos em Batendo pasto a força da poesia de Maria Lúcia. Não existe amenidade nem bucolismo convencional neste livro, e se ela tem coragem de assumir o desespero, pois sabe que “o sentimento é um antro” (Largo da ideia), também não sufoca o êxtase do que nos arrebata, compreendendo que “o carinho é um outro caminho do corpo” (Angelim).

Ainda uma outra novidade inesperada: a crítica literária em forma de poema. O número III de “Cinco sonetos encapuchados” lê Clarice Lispector com argúcia e observações diretas pontuando cada verso, a partir do primeiro quarteto. O soneto afirma a coragem, apanágio de ambas as escritoras:

Em Clarice, o humano era disfarce
para o bicho que nela dormitava.
À guisa de dublar-se. A esquivar-se.
Crivada de aderências, como o cáctus.

[...]

Assim: esboroar. Chega-te, Deus:
pela via do corpo, tergiverso.
Baldado o coração, que bate em cheio.

Os ramos desta árvore, caros leitores, são muitos. Por isso mesmo não posso terminar estas notas sem uma referência a Fausto Alvim, pai de Maria Lúcia e de seus quatro talentosos irmãos; além de notável “escultor de árvores”, que também é preciso resgatar. Num catálogo de sua exposição no Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte) em 1976, li a primeira frase do texto de Lélia Frota: “As esculturas de Fausto Alvim a gente percorre como se entrasse no mato — ele escolheu madeira para seu trabalho, e como é sentida aqui a presença das árvores!”

O mesmo acontece em Batendo pasto, com seus bichos, morcegos que pendem do coração, e suas árvores, principalmente a Figueira-brava, (com “flores invisíveis encerradas em receptáculo carnoso”), tendo ao lado a Figueira-mansa (“escamosa/solitária/ [...]/árvore-corpo/pojando”).

O círculo está completo.

 

NOTAS

[nota 1]
Juliana Veloso Mendes de Freitas, A narrativa histórica na poesia de Maria Lúcia Alvim: Romanceiro de Dona Beja, orientação de Sérgio Alcides, 2015.

[nota 2]
Paulo Henriques Britto, Fisiologia da composição, poema do livro Macau (São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13).