Ao longo da década de 1970, o pequeno e reservado vilarejo conhecido como The Pines atraiu uma enorme quantidade de homens que buscavam momentos de prazer e descontração ao lado de outros homens. Localizado em Fire Island, uma ilha-barreira ao sul de Long Island (Nova York), em Pines era possível festejar livremente e em segurança, andar de mãos dadas com outros caras sem julgamento e dançar a noite inteira até encontrar alguém com quem dividir a cama.
Entre os homens que aos fins de semana lotavam aviões, trens e ônibus em direção à Fire Island estava o fotógrafo Tom Bianchi, que na época morava em Manhattan e era advogado da Columbia Pictures. Em uma conferência executiva, ele e os demais participantes foram presenteados com uma Polaroid SX-70, câmera que levaria para Pines para fotografar os amigos em momentos de companheirismo e diversão. Se o receio em relação à fotografia era grande, sobretudo porque muitos ali guardavam segredo sobre suas práticas sexuais, ter uma Polaroid lhe permitia espalhar as fotografias sobre a mesa logo após o registro, deixando os fotografados mais confortáveis.
Bianchi produziu um acervo que ficou arquivado por décadas, com parte dessas imagens sendo publicadas apenas em 2013. Seu livro Fire Island Pines – Polaroids 1975-1983 (Editora Damiani) é um importante testemunho da formação de uma comunidade que, como ele declara, permitiu que muitos homens deixassem de lado os julgamentos internalizados para construir uma experiência de liberdade que até então desconheciam.
Se o trabalho fotográfico de Bianchi tem como marca o forte teor sexual – sendo o desejo considerado por ele como uma força irresistível que nos mantém no planeta, assim como a gravidade –, é possível perceber algumas imagens mais silenciosas ao longo do livro, em que a energia libidinal se manifesta através de singelas tramas afetivas. São imagens menos espetaculosas, que chamam a atenção pela intimidade do contato entre os corpos e por uma aparente espontaneidade que nos leva a crer que, em Fire Island Pines, a relação entre homens não era apenas uma manifestação do desejo, mas também algo de desejável.
HOMOSSEXUALIDADE E DESEJO
Refúgio de verão para a comunidade LGBT+ desde os anos 1940 (com Pines sendo uma área associada a homens gays e, a região de Cherry Grove, às mulheres lésbicas), Fire Island viveu seu esplendor num momento em que o mundo era sacudido por uma multiplicidade de processos que visavam a desintegração das estruturas reacionárias. Através da convocação geral de não submissão às forças da ordem, o período foi marcado pelas sucessivas tentativas de instauração de uma cultura libertária, no rastro do impacto provocado pelos processos revolucionários de descolonização, pela luta de negros e negras por direitos civis, pelas experiências insurrecionais de 1968, pela rebelião de Stonewall em 1969, pela contracultura, pela atuação dos movimentos operários, estudantis, autonomistas, feministas e homossexuais, dentre inúmeras outras formas de ampliação dos horizontes de emancipação.
Na França pós-1968, na confluência das lutas com os discursos produzidos pelo marxismo, pelo existencialismo, pela psicanálise e pelo estruturalismo, despontou um importante movimento de pensamento conhecido como filosofia pós-estrutural. Entre seus entusiastas estava o jornalista, escritor, filósofo e membro fundador da Frente Homossexual de Ação Revolucionária (F.H.A.R) Guy Hocquenghem (1946-1988), autor do ousado e surpreendente O desejo homossexual, obra publicada em 1972 e recém-lançada pela editora A Bolha, com tradução de Daniel Lühmann.
Em seu livro, Hocquenghem trata de interrogar a maneira como o mundo heterossexual discorre e fantasia sobre o que se considera como “homossexualidade masculina”. Segundo ele, não haveria razões para acreditarmos que o desejo seja capaz de se subdividir mecanicamente: tanto o desejo heterossexual quanto o desejo homossexual são apenas recortes arbitrários em um fluxo ininterrupto e polívoco.
Se a homossexualidade assume um caráter fantasmático que assombra o mundo “normal”, é justamente porque ela manifesta algo do desejo que não se resume ao ato sexual. Para o autor, a sociedade capitalista fabricou o homossexual do mesmo modo que produziu o proletário, suscitando seus próprios limites constantemente. Por isso, os representantes da Lei e da Medicina precisaram criar a noção de homossexualidade no final do século XIX, recodificando as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo como formas de doença, desvio ou crime contra a natureza.
Afinal, era preciso adestrar o proletariado e suas famílias para produzir corpos politicamente submissos e economicamente rentáveis. A redefinição dos valores da família patriarcal foi um passo fundamental nesse sentido, já que não se podia tolerar que a força de trabalho se dissipasse através dos prazeres cotidianos – salvo o mínimo necessário para a reprodução de novos trabalhadores.
A patologização da homossexualidade serviu como um importante mecanismo de confirmação da heterossexualidade familiar reprodutora. Se até a década de 1970 ela esteve presente nos manuais psiquiátricos do Ocidente como doença sexual, sua retirada foi prontamente substituída pelas noções de “intersexualidade” e “transexualidade”, atualizando assim os limites da normalidade.
Como também demonstrou Michel Foucault (1926-1984) em História da sexualidade I: A vontade de saber (1976), a sexualidade não foi reprimida com o advento do capitalismo. Ao contrário, o sexo foi incitado a se manifestar por uma vontade de saber sobre a sexualidade que deu lugar a estratégias de controle dos indivíduos e das populações. Ao questionar a “hipótese repressiva”, Foucault nos ensinou a ver o poder como algo que se espalha por todos os domínios da vida social. Dessa forma, foi possível entender que a enorme proliferação de discursos sobre a sexualidade, intensificada no século XIX com o nascimento das ciências humanas, em especial com a psicanálise, buscou produzir não apenas a sexualidade considerada “normal”, mas sobretudo a figura do “desviante sexual”.
A EDIPIANIZAÇÃO HOMOSSEXUAL
Hocquenghem considera que a repressão moderna precisou estabelecer um intrincado jogo entre a culpabilidade por meio das leis e a psicologia da culpabilidade. Se nenhuma civilização fundada na dominação pela força de um modo sexual sobre todos os outros poderia subsistir por muito tempo, o enfraquecimento das crenças religiosas demandou a construção de novas barreiras morais.
Em diálogo com O anti-Édipo, que acabara de ser publicado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ele defende que o “freudismo” desempenhou um papel fundamental na moralização do desejo. Se Freud foi capaz de descobrir a libido como fundamento da vida afetiva, ao mesmo tempo ele organizou seu controle através da universalização do mito de Édipo, um empreendimento que representou a interiorização da instituição familiar por meio de um inimaginável sistema de culpabilidade. Para Hocquenghem, uma das armas mais fortes da sociedade capitalista foi ter sido capaz de transformar Édipo em natureza social, através de uma interiorização da opressão que lhe deixaria livre para se reconstituir sob todas as bandeiras políticas.
No mundo da sexualidade e da edipianização existe apenas um único órgão sexual, o significante despótico que constrói todas as faltas: o Falo. Por isso, nossas sociedades são organizadas ao redor de machos portadores de falos que competem entre si. Se todos os homens têm um falo que lhes garante um papel social, cada um deles tem um ânus que é só seu, no mais profundo e mais escondido de sua pessoa. “O ânus não está em relação social, pois ele constitui precisamente o indivíduo e permite por esse mecanismo a divisão entre sociedade e indivíduo”, escreve Hocquenghem em diálogo com Deleuze e Guattari.
Dessa forma, ele considera que se a expressão direta do desejo homossexual pode assumir um sentido social, certamente não será numa sociedade fundada no reinado da paranoia anti-homossexual e da sublimação como sistema heterossexual familiar. Daí a necessidade de construção de modos de relações sociais capazes de fazer o social da hierarquia fálica se despedaçar.
NOTAS SOBRE OS PRIMEIROS DIAS DA REVOLUÇÃO SEXUAL
Se as décadas de 1960 e 1970 viram emergir uma revolução no campo do desejo, o início da década de 1980 impôs um dos momentos mais difíceis para a comunidade LGBT+: a epidemia do HIV/Aids (que, entre muitos e inestimáveis nomes, nos levou Foucault e Hocquenghem). Rapidamente, as forças da ordem se encarregaram de atualizar os discursos patologizantes, tratando a epidemia como um câncer gay.
Considerado até então um paraíso da liberdade, Fire Island Pines atravessou um momento devastador, vendo seus frequentadores morrerem um após o outro. Segundo relata Bianchi, era impossível absorver o que estava acontecendo ali. Ainda que ele e seus amigos não estivessem fazendo nada de errado, apenas se divertindo como todos os garotos, a epidemia fez com que eles despertassem para o novo momento que então se apresentava. A festa deu lugar ao luto, mas levou também a um engajamento político da comunidade ao redor do mundo.
No posfácio para o livro de Hocquenghem, o filósofo Paul B. Preciado escreve que O desejo homossexual não é apenas um livro entre outros sobre a homossexualidade, mas o primeiro “texto terrorista” que confronta diretamente a linguagem heterossexual hegemônica, o primeiro diagnóstico crítico acerca da relação entre capitalismo e heterossexualidade feito por uma bicha que não oculta sua condição de “anormal” e de “escória social” para começar a falar.
Para Preciado, a grande sacada de Hocquenghem foi questionar se um dia Édipo teve um ânus. Afinal, no homem heterossexual o ânus não é um órgão, mas apenas um orifício excretor, uma cicatriz que a castração deixa em um corpo como preço a ser pago ao regime heterossexual pelo privilégio de sua masculinidade. Ao erigirem comunidades que chamaram de Cidade, Estado, Pátria, os homens castrados excluíram dos órgãos de poder todos aqueles cujos ânus permaneciam abertos: “mulheres duplamente perfuradas por seus ânus e vagina, todo o corpo transformável em cavidade uterina capaz de abrigar futuros cidadãos, mas também os corpos bichas que o poder não pôde castrar.”
Ao se deter demoradamente nos discursos médicos, psiquiátricos, psicanalíticos, midiáticos etc., Hocquenghem nos apresenta a heterossexualidade como uma complexa e perversa linguagem: um conjunto de signos, técnicas coercitivas e estilos corporais. Por isso, falar em desejo homossexual é apenas um mecanismo de construção política, assim como articular publicamente uma identidade fora da normalidade do sistema heteronormativo.
Preciado considera o livro como antecipação de uma forma de saber que hoje conhecemos como teoria queer, um questionamento radical dos modos de produção de subjetividade na modernidade capitalista, inseparável dos ativismos e das estratégias de luta frente à normalização dos corpos, mas também uma reação crítica às políticas de identidade, sobretudo dos gays brancos de classe média alta, que acabaram sendo integradas pelo progressismo neoliberal: “O ânus homossexual fala e produz pela primeira vez um saber sobre si mesmo. Esse saber não procede da culpa ou da vergonha, não procura se escusar nem se legitimar, não é uma descrição da patologia ou da deficiência, mas se apresenta como uma forma de crítica política e de transformação social.”