Doenças costumam ser metáforas de situações inesperadas que tensionam os limites entre vida e morte, como a pandemia que nos aflige. Traduzem movimentos de significação que transcendem o fato em si, sem deixar de circunscrevê-lo em todas as suas nuances. É o que ocorre em eu, morto (Editora Iluminuras), livro de poesia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira (foto), recentemente publicado. Um longo poema em versos de diferentes entonações e nas múltiplas perspectivas que o eu lírico adota para escrever as “memórias póstumas da quarentena”.
O aceno a Machado, logo na abertura do livro, inscreve o leitor num jogo de alusões literárias que vão de Bandeira a Drummond, de Gullar aos chamados poetas da geração mimeógrafo, remissões perpassadas pelo fio fino do humor e da ironia — “pandêmico pessimista/trocei do vírus/e morri de rir”, anuncia o poeta. O diálogo com outros escritores é apenas a ponta do novelo que vai desfiando em busca da linguagem capaz de dar forma, “por conta do peso das palavras”, ao entrelugar que seu corpo morto — e vivo — ocupa na página em branco: “bem feito/ porque não fiz nada/ bem feito// nem morrer/ morri direito”.
O uso constante do clichê, revigorado pela sua desconstrução, dá o tom de oralidade assumido pelo poema, uma conversa do poeta consigo mesmo e com o leitor. Aliás, a vírgula do título — eu, morto — torna ambivalente o direcionamento do poema e garante sua natureza dialógica, num aceno oblíquo ao leitor, instância de repercussão da matéria tratada, chamado a participar desse bakhtiniano diálogo de mortos, que, carnavalizado, alcança força generalizadora: “se sou do samba// defunto// passista/ de/ pés juntos”.
Circunstância e transcendência — ou universal, como é dito no surpreendente colofão do livro — fazem da meditação sobre a morte que “se fez clichê” uma forma de compreensão do vivido, com ritmo próprio e viés alegórico: “linha a linha/ abaixo do horizonte/ esfolam-se infernos aqui mesmo/ na terrinha”. Lampejos de lembranças mais antigas, como “um pião de madeira sem cordonnet”, quebram ou paralisam por instantes o fluxo da memória do presente e se deixam ler como suplemento da cerrada reflexão do percurso empreendido, não isenta de galhofa — “sim/ errei muitas vezes/ noutras tantas/ ajuntei besteiras”.
Aqui na terrinha: um país de “peão/ pé-rapado/ em/ xeque-mate/ ?”, onde “se morre de política” e que não passa de mistura mal-arranjada de quartel, botinas, embustes, chacinas e álcool gel, despachos de macumba e serotonina. O poeta nele se desloca e dele se descola com a liberdade de movimento e visão que a perspectiva póstuma — “veni, vidi e morri” — lhe dá. Faz dela matéria de poesia, num esforço bem-sucedido de autorreflexão, como se na frente de um espelho ou do outro lado dele uma forma de saber se fosse compondo, à beira do precipício ou já nele despencado. Talvez por isso o “brasil”, nomeado apenas uma vez e em letra minúscula como todo o texto e os títulos dos livros do escritor, desapareça em meio ao caos que o configura como imagem de nação que poderia ter sido e que não foi — resta só um eu, mínimos eus em ruínas.
A bela e terrível foto da capa do livro, de autoria do próprio escritor, se dá a ver como imagem- -síntese a um só tempo pétrea e diáfana do túmulo-livro: um cenotáfio que celebra a memória dos mortos pela voz de um interposto eu lírico que se identifica desde o poema-orelha com sua impossível elocução — “orelha/ sem/ vida/ :/ epitáfio/ dos/ livros // na/ sepultura/ da/ voz/ muda/ :/ perpétua/ ressequida”. Mas é preciso dar voz e forma à impossibilidade mesma de dizer do outro que o eu se torna do lado de lá: “e, morto, posso contemplar o outro/ finalmente revivescido em mim”.
Nesse embate sem fim ou arriscado jogo em que “perdemos/ todos/ a aposta” se constitui a linguagem da finitude do presente post mortem, pois, afinal, “quanto tempo/ alguém escuta/ depois de morrer/ ?”. A indagação, que se vai compondo ao longo do poema e de certo modo o sustenta na sua materialidade, reveste as inquietudes do poeta — e do leitor, então, o tornado seu cúmplice — em inquietude da letra. Ou como lembra o trava- -línguas de poema de outro livro do autor, peixe e míngua (2003): “a e i o u/ ou/ ai o eu?”. A poesia de eu, morto está toda nessa pergunta descabida ou sem resposta diante do indizível quando “tá tudo ruço”.
No fim do livro, o verso-palavra solitário no meio da página — “fui” — aumenta a ambivalência de seu significado e faz dele, mais do que desistência final, possibilidade de novos caminhos a serem trilhados. O alto nível atingido pela poesia de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira o confirma, como já ocorrera com o ficcionista excepcional de as visitas que hoje estamos (2012), uma das vozes mais expressivas da literatura atual, pela capacidade incomum que tem de nos fazer ver e ouvir, como num LP riscado e com força de persuasão artística, as agruras do tempo presente, da vida presente.