Isso tudo foi no final dos disruptivos anos 1960. De um lado dos Estados Unidos, os hippies de São Francisco erguiam sua ideologia de um novo futuro com flores, amor & paz; do outro, em NY, um grupo de outsiders, de despojados de esperança e de guerrilheiros contra o destino da anatomia criava uma narrativa de últimas festas e de luzes que se apagam, enquanto mantinham uma postura aristocrática. E isso numa cidade infestada por ratos e linhas de metros suspeitas, mas que abrigava um rei, o multiartista e vampiro Andy Warhol. Viviam à parte do mundo, como toda realeza. Há até uma razão geográfica para se entender esse reinado à meia-luz: São Francisco era uma península e Nova York, um conjunto de ilhas. Os protegidos do rei, o grupo Velvet Underground, foram exímios em cantar a barra-pesada insular desta corte. Na canção Candy says, retratam a vida da atriz transsexual Candy Darling (1944–1974): “Candy diz ‘eu cheguei a odiar meu corpo’” e a música segue entre uma marcha fúnebre ou uma declaração de amor.
A imagem mais famosa de Candy é do fotógrafo Peter Hujar, que a retrata prostrada em seu leito de morte. Ela está maquiada, loira, há flores ao seu redor e seu olhar nos desafia como só uma rainha pode fazer. Foi uma sacada genial da edição brasileira de Loira suicida (Companhia das Letras), da escritora norte-americana Darcey Steinke (foto) com tradução de Simone Campos, ter Candy nos encarando outra vez na capa. Estamos longe dos anos 1960, Loira suicida é um romance dos anos 1990 e sua Geração X, e X foi a letra da dúvida. O que fazer, para onde ir (talvez NY ou São Francisco a essa altura não fossem mais nem cidades, nem ilhas, nem penínsulas, apenas conjecturas), como amar e como (se) perder para se achar? Somos guiados pelo olhar de Candy já na primeira linha, a inebriante dúvida: “Seria o bourbon ou o cheiro de tintura que fazia as paredes cor-de-rosa tremular feito lábios vaginais?”. E mais: seria o gosto da bebida e o novo cabelo que salvariam a narradora Jesse de cortar os pulsos? Ser uma loira suicida (e aqui não vai nenhum spoiler) não implica em morrer. Mas continuar em frente, após cortar os laços com um passado burguês, se apaixonar por um bissexual que enfrenta a iminência da decrepitude do corpo e de se ver obrigada a tolerar as fantasias maternais da volumosa Pig.
Steinke retrata com cruel afeto a tensão pré-milênio e o medo dos que não enxergam o futuro em meio a rondas noturnas sem amanhecer. Loira suicida é como um longo poema sobre uma noite depois de outra noite e com mais uma noite em seguida. Quando digo que Loira suicida parece um longo poema, penso que até poderia ser um cântico bíblico. Em determinado momento nossa bad girl diz: “Na entrada de Los Angeles parei em um posto de gasolina, comprei um mapa e perguntei ao mecânico se poderia me mostrar como chegar até a igreja. Ele desenhou uma sinuosa cobra azul que se esgueirava como eu agora pelos cânions”. Outra vez é a serpente que guia à perdição ou à salvação, como ocorreu com a primeira bad girl que temos notícia, Eva. A frase final do livro (não, isso talvez não seja um spoiler) fala sobre morrer pelos pecados de alguém. Steinke não nos deixa saber muito bem o que acontecerá com Jesse em sua jornada para lugar nenhum. Enquanto isso, Candy nos espreita na capa e nos leva a terminar o livro querendo talvez fazer uma playlist. Mas terminei o livro lembrando que li em algum lugar que, quando se sai de um cemitério, não se deve olhar para trás.