Um jovem Jorge Amado, pouco antes de completar 25 anos, atravessou as Américas, em 1937, para alargar seu horizonte literário. Do Uruguai ao México, esticando até Nova York, percorreu durante meses cidades latino-americanas, quando conheceu autores, jornalistas e editores, e nas oportunidades que surgiam vendeu direitos de seus livros.
De volta ao Brasil estava singularmente deslumbrado com um romance, Dona Bárbara, e seu autor, o venezuelano Rómulo Gallegos (foto), de quem ouvira muito falar. Àquela altura o romance de Gallegos se tornava um best-seller transnacional. Vendido a Hollywood, a película estrearia em 1943. Virou telenovela na Venezuela na mais recente adaptação, no ano de 2008. Em seu país, é um clássico.
Comentei que Amado se deslumbrou, mas é possível demonstrar tal consternação com dois fatos.
O primeiro é que resolveu ele mesmo verter a obra para a língua portuguesa. Muitos livros naqueles anos começaram a estampar na capa seu nome como tradutor, mas Amado admitia que o único que traduziu, de fato, foi Dona Bárbara. Os “empréstimos” de nome não eram incomuns no mercado editorial à época, editores lançavam mão do expediente para alavancar vendas quando o tradutor era mais conhecido. Os tradutores postiços topavam para obter percentual, ou pelo laço afetivo com editor ou tradutor original.
Um tradutor iniciante no ramo, com muitas licenças e algumas baianidades, Amado não fez nenhum primor ao dedicar-se à empreitada laboriosa, e a experiência deve tê-lo afastado tanto de sua real vocação que não desejou repeti-la depois. Essa primeira edição de Dona Bárbara saiu em 1940 pela pequena editora paranaense Guaíra, que não só topou a empreitada como foi convencida por Amado a lançar outros autores hispano-hablantes indicados por ele. Três décadas mais tarde, o romance, com a mesma tradução de Amado então revista, seria republicado pela Record.
Na sequência à tradução, escreveria aquele que foi por muito tempo considerado seu grande livro até ali, Terras do sem fim (que tem pontos em comum com a obra de Gallegos), além de uma continuação, São Jorge dos Ilhéus. Para resumir essa afinidade, tratou de incorporar a perspectiva daquele que seria chamado, em território latino-americano, de romance da terra. Essa incursão literária recuperava a vida rural, à medida que os países se urbanizavam em ritmo veloz: na luta de famílias rivais pela posse de território, havia muito de violência e paixões inesperadas. Sobretudo a partir dessa nova fase, Amado seria capaz de humanizar seus senhores de terra.
Importante, agora, é contar que uma nova tradução de Dona Bárbara está por aqui e, com ela, a chance de reapresentar o romance ao leitor brasileiro. Chega numa edição de mil cópias, providenciada pela nova Pinard, editora que se dedicará à literatura latino-americana, e numa atenta tradução de André Aires e ilustrações de Luísa Zardo. O próximo lançamento da editora é uma antologia da poeta chilena Gabriela Mistral, outro sucesso daqueles anos.
ESPAÇO E CIVILIZAÇÃO
O cenário de Gallegos é a Venezuela de 1910; é, de certo modo, um retorno ao passado, pois o livro foi lançado em 1929. Em torno do conflito entre valores de “civilização” e “barbárie” – palavras que devem ser entendidas com a conotação da época –, Gallegos segue um percurso aberto por Domingo Faustino Sarmiento numa obra fundadora da literatura argentina, Facundo, de 1845. Como ponto de partida, há o retorno de um jovem bem educado para a região de sua família. Herdeiro de Evaristo Luzardo, o recém-formado advogado Santos Luzardo chega após a morte do pai a sua propriedade, assumida por outra personagem, a Dona Bárbara que dá título. De origem indígena, é sobrevivente da violência do campo e seu desejo de vingança, como iremos saber, origina-se de um trauma do passado – um estupro. De representante da então possível “barbárie”, se torna uma figura multifacetada, e uma atração ligará os dois antípodas. O que vai significar, afinal, a tal “civilização”?
De novo pensando em Amado, vale lembrar que Don’Ana Badaró é o nome da filha de Sinhô Badaró que assumirá seu lugar nas grandes lutas pela posse da terra ao final de Terras do sem fim. A chegada de um jovem advogado à região de origem dá início a São Jorge dos Ilhéus. Décadas à frente, Tereza Batista, personagem de Amado, também passa por um traumático estupro logo no começo de sua trajetória.
A trajetória literária de ambos também alcançou a política. Amado se tornou deputado comunista em 1946; cassado dois anos depois seguiu para o exílio na Europa. Gallegos, um dos fundadores do partido Acción Democrática, seria eleito para a Presidência da República em 1947. Exerceu o mandato de fevereiro até novembro do mesmo ano, sendo destituído por um golpe militar liderado por Marcos Pérez Jiménez. Viveu como exilado em Cuba e no México. Ambos, Amado e Gallegos, foram muitas vezes cogitados para o Nobel de Literatura, sem sucesso. Nobel mesmo foi Gabriela Mistral, em 1945.
De tudo o que foi dito, ao leitor poderá parecer uma obra datada, mas o grande barato de lê-las é que elas têm a capacidade de nos levar a um exato tempo histórico e, assim, entender seu mundo — o de seus criadores — como era possível vê-lo ali.