Na publicação, Glantz chama atenção para o que denomina “desierarquização” dos assuntos na comunicação via internet, a que atribui a sensação de que o mundo é um lugar em que todos falam, mas ninguém escuta. O livro é, todo ele, escrito em um único parágrafo abigarrado — termo que a escritora recupera em diversos textos seus e que, em português, poderia ser traduzido como algo que reúne numerosos elementos mal combinados, sem relação conceitual entre si. O efeito do texto escrito de um só fôlego remete à saturação da linguagem nestes tempos, lembrando o sufocamento do sujeito que mal teve tempo de digerir a notícia trágica do dia e já é lançado a vídeos de gatinhos fofos e, em seguida, a uma promoção imperdível de cadeiras de praia.
“Ao ler as notícias como decidir o que é mais importante? Que no dia 31 de janeiro de 2018 aparecesse no céu uma enorme Lua azul, ensanguentada; que ao conhecer Felice, sua futura noiva, Kafka escrevesse em seu Diário: Um rosto vazio que levava abertamente seu vazio; que o axolote mexicano seja o único animal capaz de regenerar extremidades, órgãos e tecido; que a Cidade do Cabo, na África do Sul, seja a primeira cidade no mundo que ficará totalmente sem água; que uns cientistas tenham conseguido criar orelhas para cinco crianças que sofriam de uma malformação hereditária; que Charlie Sheen seja portador do HIV, que as ruas de Coyoacán tenham as luzes acesas ou apagadas, que se faça justiça em Ayotzinapa, que a dívida pública mexicana seja incontrolável, que haja reféns em Mali, que se legalize ou não a maconha, que o terrorismo se torne incontrolável, que Trump ou Clinton ou Scioli ou Macri tenham ganhado…”, é a reflexão inicial do texto.
Desistindo de conhecer racionalmente a totalidade do universo – porque seria impossível – acaba por fazer, ao final do poema, a defesa da insistência no ato de conhecer, que deve acontecer de maneira implacável, em contraposição à aceitação de dogmas, no caso, os dogmas religiosos. O tratamento que Sor Juana dá ao tema do intelecto humano neste poema seria uma manifestação do Iluminismo avant-la-lettre. Segundo Octavio Paz, em Sóror Juana Inés de La Cruz: as armadilhas da fé, tal aproximação do ato de conhecer alça o poema ao emblema da Modernidade: “um poema barroco que nega o barroco”.
Diante disso, em um momento do mundo em que o retorno ao obscurantismo atrai número crescente de adeptos, não teria sido fortuita a escolha do título e do assunto, que convidam à reflexão a respeito dos usos da linguagem, sob pena de se ter, como efeito, o endurecimento de um sujeito que recebe – pelos mesmos meios e sem discernimento – mensagens de acontecimentos atrozes, como a detenção de crianças migrantes nos EUA, seguidas de imagens de cachorrinhos se fazendo de inocentes após ter rasgado e espalhado papel pela sala de estar.
Por outro lado, em entrevista concedida a mim em dezembro de 2018 [nota 2], a mexicana não deixou de atribuir um caráter libertador ao intenso fluxo de informações proporcionado pela relativa massificação do acesso à internet. Ela atribuiu caráter emancipador à possibilidade de disseminar denúncias horizontalmente e, também, à possibilidade de formação de redes. Porém, declarou acreditar que a falta de capacidade de discernir, de hierarquizar o imenso volume de informações acabou servindo a propósitos políticos ocultos, como parece ter acontecido durante as últimas eleições estadunidenses e brasileiras.
Ao comparar a forma escolhida pela mexicana no livro lançado no Brasil a do conjunto de seus textos literários anteriores, chama atenção a escolha pelo texto corrido, sem respiro, ao longo das 164 páginas do original. Sua escrita era, até então, quase toda cheias de respiros entre um e outro fragmento. Em geral, são textos cujas partes podem ser lidas separadamente, mas que não deixam de guardar a possibilidade de tessitura de um fio narrativo por parte do leitor, possibilitando então leituras tão numerosas quantos forem os leitores e as maneiras de ler. Nesse sentido, a enumeração abigarrada do título lançado no Brasil não aparece mais em tom de celebração da dispersão, mas como um convite à reflexão sobre a recuperação da potência da palavra no meio de afetos líquidos e de pós-verdades. Como em uma deriva pelas redes sociais, Glantz acompanha seu leitor com humor e profundidade típicos.
MARGO: SUA TENDA, SUA MORADA
Se eu pudesse escolher uma palavra para definir o projeto literário de Margo Glantz, usaria a metáfora de Tamara Kamenszein, em Poéticas de la distancia: adentro y afuera de la literatura argentina (2006), quando diz que livros são como tendas: “[…] Então, a casa aqui já é um toldo, aberto dos quatro lados, precário ao máximo. Contudo, sua presença já marca, no deserto, um território próprio. Poderíamos defini-lo como o território do livro”, diz Kamenszein. E mais, no caso de Glantz, os livros são tendas de palavras migrantes que caminham, em caravana, e estão em constante movimento.
“Viajo como si fuera mi único destino”, diz em uma das entradas de seu livro Yo también me acuerdo, de 2014, texto com que se inscreve na série composta por I remember, de Joe Brainard e Je me souviens, de Georges Perec, obras que dialogam esteticamente. Nesses livros, as memórias de acontecimentos cotidianos, banais até, da vida dos escritores são justapostas a memórias de grandes momentos históricos. No livro de Glantz, todas elas foram escritas em frases muito curtas (que inclusive lembram um tweet) em um movimento um pouco equivalente àquele em que as pessoas se lembram de situações prosaicas quando perguntadas “onde você estava no 11 de setembro?”. Esse tipo de pergunta suscita respostas diversas, que trazem à existência sulcos de pequenas histórias que vão se desenhando no curso da História oficial. A naturalidade com que Glantz transita entre o erudito e o banal, entre a História e as pequenas histórias em seus livros é a prova de seu destino de viajante.
“Nos constantes vaivéns da vida de um náufrago, as cartografias se inscrevem e os furacões se dissipam”, diz em Síndrome de naufragios. O clima dessa pequena contribuição que o corpo naufragado tem a oferecer é o mesmo de E por olhar tudo, nada via. São as pequenas reflexões que o escritor pode abrir no meio do estrondo constante das redes sociais, materializados em bombas lançadas no Oriente Médio ou em vídeos de bichinhos desastrados.
A primeira epígrafe do livro é um trecho de Franz Kafka, escritor nascido em Praga (cidade que, historicamente, abriga múltiplos caracteres culturais, entre os quais a cultura tcheca, a judaica europeia e a alemã): “Felizmente, a incongruência do mundo é de índole quantitativa. A história dos homens é um instante entre os dois passos de um caminhante”. Kafka parece mesmo aceitar a incongruência do mundo como destino, já que o tempo e o espaço que abrigam os absurdos humanos, tão destacados neste título, são grandezas relativas. Com perdão do famigerado spoiler, conceito que não estou segura de se aplicar aos poemas de freiras e às várias enumerações que se erguem como acampamentos de palavras, o livro também termina com uma entrada de um dos diários do escritor tcheco: “Todos os dias tenho que escrever pelo menos uma frase contra mim”.
*O livro está em pré-venda pelo site da editora: https://www.relicarioedicoes.com/livros/e-por-olhar-tudo-nada-via/
NOTAS
[nota 1]. E por olhá-lo inteiro, nada via,/ nem discernir podia,/ lança a faculdade intelectiva/ em tanta, tão difusa/ incompreensível espécie que olhava…” (tradução minha).
[nota 2]. A entrevista será publicada na revista do Programa de pós-graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana da Universidade de São Paulo (USP), Caracol.