É fácil ver o começo das coisas e mais difícil ver o fim. Tomo emprestada a frase de Joan Didion que abre Adeus a tudo isso, um dos depoimentos do seu clássico livro de artigos Rastejando até Belém (1968), que ganha uma edição em português pela Todavia justamente quando estamos assim, sem saber direito quando o que chamamos de século XX de fato terminou. Não foi, com certeza, no fracassado bug do milênio, na meia-noite em que os ponteiros marcaram a chegada do ano 2000 com a ênfase de um episódio de Os Jetsons. Era quase unânime que seu fim tenha ocorrido naquela manhã do 11 de setembro de 2001, quando do ataque às Torres Gêmeas, que nos deu como signo do novo século a — ainda que já antiga — desconfiança do “diferente”, do estrangeiro, do horror à mistura de sotaques típica de uma época de rápidas locomoções e de um sem-fim de refugiados que perderam suas pátrias simbólica e concretamente. Todos eram terroristas até que se prove o contrário.
Talvez tenha sido no crack das bolsas de 2008, tão bem retratado no filme Hustlers (2019), em que a personagem de Jennifer Lopez nos informa que o centro financeiro de Nova York, em frangalhos, acabou virando uma grande boate de strippers. Ou mesmo o século XX tenha acabado há menos de um ano quando o mundo, que se orgulhava de ser tão veloz, precisou parar e tentar respirar. A pandemia do novo coronavírus parece carregar em si uma bala de prata contra boa parte das fortalezas que o século XX se orgulhou de ter erguido. Voltamos ao medo, à fragilidade e, pior, à superstição que a modernidade prometia ter encontrado a cura.
Mas Rastejando até Belém ser relançado nesse momento é simbólico também por outras razões. Aqui temos uma das grandes prosadoras do século XX, uma testemunha de olhar afiado, que sabe usar a fragilidade física do seu corpo para quase se manter invisível e, assim, melhor observar seus objetos de estudo, em estado de vertigem. Didion vivia um desses momentos em que o fim e o começo de algo eram difíceis de ser detectados. Em algum momento da década de 1960, o século que vinha combalido por duas guerras mundiais e por paranoias de todo o tipo parecia ter dado um reset. Alguma coisa ali implodiu. Perdeu o rumo. De repente o século ficou jovem demais, rebelde demais, chapado demais, foi para as ruas, tirou a roupa e parecia querer tirar também as tradições até então vigentes. A década de 1960 fritou corações e mentes. For those who come to San Francisco, be sure to wear some flowers in your hair — dizia a hoje quase elegíaca canção do grupo The Mamas & The Papas. Se é impossível viver muito tempo no centro de uma revolução, aqueles anos tentaram sobreviver dentro dela ao máximo. Nem todos os corpos aguentaram. Olhar o mundo num campo de batalhas é tarefa ardilosa até para Didion.
Se a reportagem que dá título ao livro se tornou célebre por tentar flagrar os hippies, vendendo seu estilo de vida para o resto dos Estados Unidos, lida hoje ela soa cada vez mais como um esboço assustado, em que os personagens retratados não têm nuances, apenas as tais flores no cabelo da canção. Faltou o olhar enviesado que o reset dos anos 1960 exigia. Claro que sempre é um prazer ler Didion. Mas confiar no seu olhar é outra coisa. Talvez nem ela mesma estivesse confiando — pensando nisso, o verso de W.B. Yeats que serve como epígrafe do livro ganha um grau a mais de significado: “Não escuta o falcão ao falcoeiro”. Ninguém estava escutando. Nem Didion.
O livro ganha ainda mais força nos momentos em que ele se presta à nostalgia do que fora o século XX até então. É o caso do artigo John Wayne: Uma canção de amor, em que as memórias de suas idas ao cinema durante a infância falam de uma época em que as cores das coisas pareciam mais nítidas. “Na verdade, eu não cresci para ser uma mulher do tipo heroína de filme de faroeste, e embora os homens que conheci fossem cheios de virtude e tenham me levado para viver em lugares que amei, eles nunca foram John Wayne, nunca me levaram a essa dobra do rio onde crescem os álamos”, escreve Didion como uma arqueóloga de si própria. E, claro, o já citado Adeus a tudo isso, sobre o tempo em que morou em NY, no começo dos seus 20 anos, descobriu a depressão e foi mais jovem que qualquer outra pessoa no mundo. Um texto frequentemente imitado e parodiado e que permanece intacto em sua capacidade de nos sufocar pela garganta.
Há quem diga que Rastejando até Belém seja o marco zero daquilo que chamamos de “novo jornalismo”, um tipo de texto em que a impressão do repórter e sua capacidade em dar voltas pirotécnicas pelo seu estilo de escrita contam mais que o fato em si. Mas a paternidade e a maternidade desse gênero é quase impossível de ser detectada. Se é difícil ver quando as coisas terminam, também não é fácil ver quando elas começam. O melhor mesmo é seguir a escrita hipnótica de Didion e se deixar enganar, quando for o caso.