Em seu ensaio A arte no horizonte do provável (1972), Haroldo de Campos escreve sobre a “provisoriedade do estético”. Segundo o poeta, as artes contemporâneas pareciam conter em si “o transitório e o relativo”, distanciando-se dos “valores permanentes” da arte clássica. Diante dessa realidade, em que regras e padrões não têm mais espaço na literatura, ler a Arte poética, de Horácio, pode ser considerado algo descabido. Apesar das diferenças evidentes entre o nosso tempo e o do poeta romano do século I a.C., essa leitura não deixa de ser válida por sua reflexão crítica e prática sobre a poesia, algo muito perceptível na tradução de Guilherme Gontijo Flores, publicada em edição bilíngue pela editora Autêntica.
Como Brunno V. G. Vieira indica no prefácio do livro, Horácio nos apresenta uma tríade de “instrução + sedução + prazer” pela qual se deve contemplar a poesia. É um poema de 476 versos que, com frequência, é apresentado como um tratado normativo, traduzido e editado como prosa. Esse tratamento mais convencional do texto está presente, por exemplo, nas edições de Jaime Bruna (Editora Cultrix, 1981) e de Dante Tringali (Musa Editora, 1993). No entanto, como Flores assinala na apresentação da obra, esse poema é mais complexo do que aparenta ser. De certa maneira, seu nome alternativo já indica o problema: Epístola (ou Carta) aos Pisões. O dito tratado, portanto, pode ser lido como uma carta com destinatário. Embora não saibamos até hoje com certeza a quais integrantes da família Pisão era endereçado, o poema-carta também não deve ser lido sem que relações com o restante da obra horaciana seja contemplada, principalmente as chamadas Epístolas.
Na visão do tradutor, Horácio se manifesta como um “regulador esquivo” no poema. Ao mesmo tempo que dá comandos e dita boas condutas, também abre espaço, inclusive em sua própria prática poética, para ambiguidades. Devido a esse fator, é essencial ler a Arte poética como poesia, em leitura silenciosa e em voz alta, recursos que oferecem outras dimensões do sentido. Flores prioriza essa abordagem ao desdobrar o texto em cada vez mais camadas, recriando o verso latino em português. Essa prática tradutória favorece a compreensão da obra horaciana para além da tripartição do livro proposta pelo tradutor, “poema, poesis, poeta”, sendo a primeira parte dedicada à composição do poema, a segunda, aos gêneros e às formas da poesia, e a terceira, à imagem e às ações do poeta. Na verdade, esse Horácio traduzido parece trabalhar com mais de um desses elementos ao mesmo tempo.
A Arte poética é, no fundo, um apelo ao bom senso. O problema é que bom senso não é algo fácil de se explicar ou mesmo de se aprender. Embora Horácio diga: “Faça à vontade, desde que simples na sua unidade” (v. 23), as definições de “simples”, “unidade” ou até mesmo de “fazer à vontade” não são consensuais, razão pela qual é preciso o poema para explicá-las e demonstrá-las. Essa defesa da moderação como direcionamento também se expressa em outros momentos, quando, por exemplo, se diz: “Quando escreverem, procurem sempre justa matéria/ para as próprias forças, ponderem em quanto recusam,/ quando sustentam os ombros. Se é controlado na escolha,/ nunca lhe falta eloquência, nunca a lúcida ordem” (v. 38-41). Trata-se, portanto, de fazer as opções mais seguras possíveis.
Após uma das transições abruptas que caracterizam o poema, no verso 73, Horácio parte para uma esfera maior do debate: a forma e o conteúdo dos gêneros poéticos em relação aos seus tipos de verso típicos. É uma pequena lição criativa que nos introduz à poética romana da época. Conhecer essas convenções e suas bases é fundamental para o poeta pois, como Horácio aponta, “se conservar os modos prescritos e as cores das obras/ eu não posso nem sei, como é que me chamam poeta?/ Como em falso pudor prefiro ignorá-lo a sabê-lo?” (v. 86–88). Por essa razão, a adequação da matéria poética a uma metrificação e outras atitudes que privilegiem a temperança tomam boa parte da Arte poética, com o objetivo de se definir estilos apropriados para cada composição, sendo dada maior atenção ao gênero dramático. O caráter prescritivo do poema se torna claro aí, assim como o fato de que o poeta não parece se ater aos próprios ditames. Leitores do restante da obra horaciana podem confirmar que nela há muitos momentos em que gêneros poéticos distintos são contrapostos ou em que o cômico e o altivo convivem.
Do verso 295 em diante, deixa-se o âmbito da poética para se iniciar uma discussão sobre como ser poeta. Na Roma do século I a.C. havia a crença de que o poeta era um homem louco, arrebatado pelos deuses. Horácio se contrapõe a essa ideia ao ressaltar que a técnica deve ser valorizada, mesmo por aquele que supostamente nasceu com talento. Ainda que evite a imagem da loucura, os humores são salientados no texto, como quando Horácio diz: “Ah, pobre de mim, que/ só nos tempos primaveris me purgo da bile!/ Sei que ninguém faria melhores poemas; mas nada/ vale tanto” (v. 301–304). O poeta escreve aos Pisões para ensiná-los poesia apesar de, segundo ele, não escrever linhas que valham a pena. A ironia está no fato, é claro, de que versos de sua própria autoria compõem a epístola. O domínio da técnica, além de ser necessidade para Horácio, também faz com que o poeta possa alcançar o prazer do texto e seduzir seus leitores, pois “leva todos os votos quem dosa o útil e o doce” (v. 343). Essa combinação dos dois elementos o leva a comparar a poesia com outras artes, como a pintura (na famosa citação “feito pintura, a poesia”), e a considerar a poesia como parte essencial da humanidade.
Ao fim, Horácio não parece decretar o que é a poesia de forma categórica, em desacordo com a visão haroldiana da arte clássica. Tudo que se diz pode, pelo próprio dizer, desmontar-se. As convenções existem, mas o poeta pode se utilizar de sua habilidade e, aos poucos, transformá-las. Por essa tradução poética da Arte poética, esses fatores se sobressaem. Também se destacam as notas de fim de texto elaboradas pelo tradutor, que se mostram elucidativas tanto ao público leigo quanto a pesquisadores da área. Além disso, uma vasta bibliografia também se encontra disponível no volume, de forma que todos possam seguir adiante no mundo horaciano.