A cada livro Milton Hatoum nos lembra o quanto somos reféns do mito. Arranhe a realidade, olhe mais de perto e perceba como as questões são sempre as mesmas a nos perseguir. Num momento tenso na Flip, há alguns anos, alertou que, sim, era um autor regional, o “mais regional de todos”. Tinha razão: sua geografia é a mitologia, e ele não consegue fugir dela, ultrapassar suas cercas ou alargar suas fronteiras. A ideia original desse texto era fazer um guia de leitura de Hatoum, retomando o conflito fraterno de Dois irmãos, a reificação da memória em Relato de um certo oriente e nossa ancestral busca pela idade do ouro (ainda que numa relação amorosa) em Órfãos do Eldorado.
Mas percorrendo outra vez a obra do convidado da Fliporto 2010, deu vontade de deixar de lado seus livros mais comentados e se voltar para um título que passou meio batido, olhado com suspeita e desatenção, A cidade ilhada. O “problema” desse livro não reside em suas páginas, e sim em nossa visão estreita do que deve ser a literatura, do que importa de fato nesse jogo. Ainda nos preocupamos com formatos rígidos, que dizem pouco: conto, poesia, novela, romance – esse aí o topo da cadeia alimentar do mercado literário. Imagine que bobagem: julgar um texto por sua extensão, com uma fita métrica em mãos. A cidade ilhada foi tratado como um Hatoum menor, na maioria das críticas, por se tratar de uma coleção de contos, alguns anteriormente já publicados, sem a (mera utopia da) unidade (ou extensão) de um romance. A preocupação com o formato desviou o olhar para o conteúdo.
Diante disso, esse texto deixou de ser um guia de leitura de Hatoum e se transformou numa espécie de “resgate” de A cidade ilhada, que encerra algumas das melhores passagens do autor amazonense. Como sempre acontece, o mito conduz o destino de todos seus personagens. Suas crias estão aqui presas, sufocadas e ilhadas (como tão bem esclarece e localiza o título do livro) em sua condição humana estreita (e por isso interessante). Seus personagens até tentam, mas não vão muito além. Varandas de Eva dá início ao livro como num conto de fadas (seriam os contos de fada os mitos domesticados?) “Varandas de Eva: o nome do lugar. Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos”. Pronto, só por essa passagem, Hatoum nos avisa que estamos longe, bem longe, de casa.
Como já sabemos onde estamos (ou onde não mais estamos), as histórias nos deixam ilhados (condição que merece ser repetida, porque é chave para a leitura) diante de um pesadelo em p&b com Euclides da Cunha; de uma amante espanhola que, prisioneira em sua língua materna, quer aprender a (des)amar lendo Machado de Assis no original; e de um casal de amantes que, reviravoltas na vida à parte, sabe que o mundo só faz sentido quando dança devagar, “de frente para o lago e a floresta, oscilando na noite que teimava não ter fim”. É possível ir muito longe quando é Hatoum que nos prende no mesmo lugar.
CONTOS
A cidade ilhada
Autor - Milton Hatoum
Editora - Companhia das Letras
Preço - R$ 33,00
Páginas - 128
Outras resenhas da edição:
Leitor através das coisas, por Schneider Carpeggiani
Poético olha virulento, por Schneider Carpeggiani