“a vida que em mim decifra-se é sertão
em romaria” (Cida Pedrosa, em Gris)
“Não como eram, mas como me parecem ter sido”
(epígrafe de Todo aquele jazz de Geoff Dyer)
Apesar de sertaneja de Bodocó (PE), a cidade do Recife, com suas frágeis arquiteturas, suas fedentinas e personalidades a vagar em desrumo pelo centro, é o conceito que costuma ser atrelado à poesia de Cida Pedrosa. Em Solo para vialejo (Cepe Editora), anunciado ontem (26), em cerimônia online, o vencedor do 62º Prêmio Jabuti nas categorias Poesia e Livro do Ano, a poeta urbana do Gris (Cepe Editora) e a das incursões às grandes métricas e motes do Sertão de Claranã (Confraria do Vento) tornam-se, enfim, uma só. As quatro décadas de produção poética, que somam dez livros, recebem agora a devida atenção.
E essa não é a única vitória do ano de Pedrosa. Foi eleita vereadora do Recife no último dia 15, pelo PCdoB, para o qual ela disse que vai ceder parte do prêmio de R$ 100 mil do Jabuti.
Em Solo para vialejo, Pedrosa atravessa o épico e o lírico, nos convidando a empreender uma arqueologia em busca de sua própria identidade, de sua ancestralidade sertaneja e “americonegroíndia”. Uma autora em busca de seu negro ser: “parto em busca de ti / negro ser (...) / parto em busca de mim”, inicia o longo poema.
Contrário ao caminho elaborado por Alberto da Cunha Melo em Aos mestres com desrespeito, poema em que a voz narrativa nos leva do Sertão até o mar, Solo para vialejo nos leva do litoral para “depois do planalto da borborema / pora-pora-eyma / pora-pora-eyma / pora-pora-eyma”, para lá do Sertão do Araripe de Pernambuco.
Ao adentrar na viagem, é a diáspora negra e indígena para o Sertão a substância poética primeira: “tristes eram os negros que / aportavam na areia um deus triste como tristes / ficamos ao conhecermos jesus e sua cruz cheia / de espinhos (...) / um deus branco e cruel que nos fez desejar / caminhar em romaria rumo ao sertão”. Apesar de ser notável esse movimento poético do litoral ao Sertão, o desenrolar do poema não segue ordem cronológica ou topográfica; o fio condutor é sempre a memória, quase sempre errante. Pedrosa até sabe para onde vai e, justamente por isso, se deixa perder.
No decorrer do poema, é elaborado um jogo laborioso entre memória individual e coletiva, que se atravessa também em investimento contra o apagamento da memória cultural sertaneja e da ancestralidade negra que lhe é negada. Diz um trecho do poema: “quem são estes cavaleiros do / apocalipse new andarilhos de rostos / apagados silenciados nas lembranças / de uma cidade sem presente / irmanados em uma velha foto de / trincheira onde identifico apenas três / três acordes do blues (...) / a tríade branca em uma jazz band onde ninguém / sabe dos negros que tocavam banjo”. Os versos se referem aos dois homens nos extremos da foto de capa do livro; os dois negros que tocavam banjo na Jazz Band União Bodocoense, os únicos da foto que nunca foram reconhecidos.
“Eu procurava essa foto mesmo antes do livro existir. Eu já tinha ouvido falar por um amigo, uns quinze anos atrás, que tinha visto em um jornal de Petrolina uma reportagem sobre as Jazz’s Bands do Sertão. Ele jurava que tinha uma de Bodocó. Eu passei anos procurando essa foto. Quando estava escrevendo o Solo, eu fui na casa do bisneto de Seu Raimundo Maciel para tratar de uma outra coisa. Ele era músico e ia fazer uma performance no Araripe. Eu era a curadora do evento. Acabou que ele tinha uma foto da Jazz Band que o bisavô fazia parte. Então, comecei a peregrinação para descobrir quem eram aqueles homens. Eu descobri quatro deles, mas ninguém nunca identificou os negros. Ora, quem são os negros que tocam banjo?”, indaga.
Solo para vialejo é uma obra tão ancestral quanto moderna, seja pela diversidade de referências que se atravessam no livro (que vão do som do pandeiro de Jackson ao violão de Bob Dylan), seja pela disposição gráfica de trechos específicos. Os cangaceiros de lampião, por exemplo, são citados em elipse, elaborando de maneira performática na mancha gráfica do poema que eles não têm fim e que sua resistência será sempre lembrada como matéria viva.
O Solo que guia a leitura nos carrega ao encontro do silêncio do vialejo que ganhou de seu pai, nunca tocado, e ao reconhecimento de que a negritude de sua ancestralidade sertaneja resiste em seu próprio ato de ser; para além de sua memória, agora também no verbo materializado no papel, perene.
(...)
me encontro e me encaixo no amor do meu amor
que respira sertão e blues
sertão
blues
sertão
blue
ser
ser tão assim
depois de um dia colhendo algodão sob o sol de
agosto papai cantava xotes para mim e me fazia
ver o mundo para além dos seus olhos azuis
mamãe cantava novenas intermináveis preparava
o chá de manjericão e acalentava nossas dores
com unguentos mágicos aprendidos com uma
desconhecida bisavó índia
negro amor negro amor negro amor
me encontro e te encontro me encontro e te
encontro me encontro e te encontro no som para
encontrar com deus na esquina e o diabo na
encruzilhada
negro ser negro ser
negro ser
te encontro me encontro
te encontro me
encontro
te
encontro
no vialejo azul que ganhei do meu pai quando
menina e nunca aprendi a tocar
(...)
me encontro e te encontro
no ser
ser tão assim
sertão
e só
*
SERVIÇO: Você pode adquirir o seu exemplar de Solo para vialejo no site da Cepe Editora. Até domingo (29), o livro está com 50% de desconto.