À frente de um abismo de proporções colossais, o filósofo espanhol Paul B. Preciado (foto) tenta estabelecer contato, quase que em termos extraterrestres, com futuros possíveis. Em um não tão distante cenário pós-fim de mundo, suas ideias devem perambular pelo espaço sideral como uma sonda lunar à espera de ser captada e codificada, com alguma sorte por humanos, criaturas ou máquinas dissociadas das epistemologias violentas a que estamos subordinados por agora.
Como seguir sendo alienígena em um planeta que se mostra inóspito para nós? A quais coordenadas — interestelares e afetivas — podemos recorrer quando nosso extermínio se trata de elaborado projeto político? Poderiam as micropolíticas queer nos auxiliar a desviar dos meteoros do necroliberalismo, que distribui de forma desigual as possibilidades de viver e de morrer? De quais alianças devemos lançar mão para uma insurgência efetiva dos corpos e vivências não identificados sob o radar da normatividade?
Mais do que tentar aferir um diagnóstico do presente, em suas publicações e falas acadêmicas e/ou midiáticas, Preciado nos instiga a propor questões que ainda não têm necessariamente resposta, mas que precisam ser elaboradas, reelaboradas e colocadas em circulação, para que se implantem e reverberem nas frestas do sistema necroliberal dominante e, assim, possam causar-lhe um curto-circuito irreversível.
Uma contraproposta epistemológica ao sistema sexo-gênero binário, e a uma política do desejo heterocentrada e falocêntrica, já era evidente no Manifesto contrassexual (2000), assim como em Testo junkie (2008), em que o autor reflete sobre o início do próprio processo de transição de gênero. De maneira mais fragmentada e liberta de proposições acadêmicas robustas, Um apartamento em Urano, recém-lançado no Brasil com tradução de Eliana Aguiar, reúne crônicas escritas para o jornal francês Libération entre 2010 e 2018. Através de recortes temáticos diversos, o autor destrincha, com mais fluidez do que nos livros anteriores, propostas para epistemologias outras, através de novas possibilidades de sensibilidade, produção de conhecimento e práticas desejantes.
São textos profundamente marcados pelos processos de transição vivenciados por Preciado no período: de um gênero a outro, quando dispõe o nome/corporalidade Paul à frente do nome/corporalidade Beatriz (reincorporado como parte de seu nome/identidade) e de um país a outro, na condição de migrante entre as fronteiras de um Ocidente e de parte da Ásia desmantelada pelo neoconservadorismo.
Embora forneça importantes elementos para uma práxis política progressista, Preciado não deve ser lido como se ocupasse um pedestal imune a controvérsias, como nenhum outro escritor/filósofo/teórico. As próprias crônicas, escritas por quase uma década, apontam para essas fissuras. Não raro, o autor — intelectual europeu socialmente lido enquanto homem branco — incorpora essas fissuras para problematizar a si próprio, como se nos dissesse, com alguma vulnerabilidade: o intelectual está nu.
Sendo-lhe a Terra inóspita, Preciado optou por passar uma temporada simbólica em Urano, o “gigante gelado”, suficientemente distante do globo terrestre infestado pelo regime tecnopatriarcal (um dos neologismos cunhados pelo autor, para quem novas linguagens e novas cenas de enunciação são fundamentais). Considerado o teto sólido do mundo na mitologia grega, Urano, na visão do autor, era o lugar distante e etéreo onde os deuses mantinham seus apartamentos. Para essa mesma mitologia, Urano é o filho que Gaia, a Terra, concebeu individualmente, e com quem se casou. Dessa relação nasceu a primeira geração de titãs, entre eles Cronos. Como pai, Urano era perverso: ou retinha os filhos no útero de Gaia ou os lançava no temido Tártaro.
Para encerrar o filicídio contínuo, Gaia incumbiu Cronos de castrar seu genitor com uma foice. Dos genitais amputados de Urano, nasceu Afrodite, a deusa do amor. O amor, portanto, teria sua origem “na desconexão entre os órgãos genitais e o corpo, do deslocamento e da exteriorização da força genital”.
O termo “uranista”, no século XIX, foi usado como sinônimo de homossexual. Preciado atualiza a mitologia e o termo para definir a si próprio: “Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês. Sou um uranista confinado nos limites do capitalismo tecnocientífico”.
Fruto dos genitais decepados de Urano, Afrodite, ou o amor, em seu sentido mais amplo e potente, parece ser a força revolucionária que Preciado busca em suas análises do contemporâneo. Essa busca, em diferentes graus, se manifesta quando o autor se debruça sobre os diversos processos de mutação política, cultural e sexual que vivenciamos, como as políticas reprodutivas, a vivacidade tenebrosa dos processos coloniais, o processo de independência catalão, o trabalho sexual, o racismo, o capacitismo e as tecnologias corporais, sexuais e também da morte.
Em meio a temas aparentemente tão dispersos e pouco otimistas, Preciado cascavilha frestas que apontam para a potência do amor como sendo a única máscara de oxigênio possível na Terra, e como arma de destruição em massa para a própria Terra, para que possa ser reconstruída a partir de uma nova imaginação política que confronte os discursos e práticas que deliberadamente elegem quais formas de vida devem viver, morrer ou sequer existir.