A criatividade não requer a originalidade num sentido estrito, como nos mostra Marjorie Perloff em O gênio não original. E não são poucos os textos literários que vão longe atrás dos limites para as suas possibilidades criativas. Intrigante para muitos leitores, O mez da grippe, “novella” de Valêncio Xavier (foto), é um exemplo disso, sendo original ou não.
Publicado pela primeira vez em 1981, é uma das primeiras obras do paulistano nascido em 1933 e radicado ainda jovem na capital paranaense. Desde cedo em sua carreira, seu autor se envolveu com mídias diversas: jornalismo, televisão, fotografia, literatura e cinema. No campo da literatura, publicou 12 livros, além de outras narrativas em periódicos do país. No cinema, foi responsável pela fundação da Cinemateca de Curitiba, em 1975, e dirigiu alguns curtas-metragens, em sua maioria premiados. Apesar desses feitos e outros mais, o escritor permanece, como tantos outros autores nacionais, desconhecido de muitos leitores. Felizmente, seu livro mais reconhecido, O mez da grippe, agora foi reeditado pela Arte & Letra, o que deve ajudar em sua divulgação.
A razão para a reedição é evidente: a epidemia de gripe espanhola, tema principal da obra, não deixa de ter semelhanças com a pandemia do novo coronavírus. Essa relação, no entanto, não resume o interesse pelo livro. Relê-lo hoje, em plena pandemia, é algo totalmente diferente, mas que, ao mesmo tempo, fez com que me lembrasse da primeira vez que o li. Na época, o longa-metragem Mistéryos (2008), de Beto Carminatti e Pedro Merege, baseado em escritos de Valêncio Xavier, tinha acabado de ser lançado, no mesmo ano em que o escritor também faleceu. Foi só então que descobri sua existência.
É claro que não saber do autor de O mez da grippe não é algo surpreendente. Não são raros os nomes da ficção brasileira de caráter mais inovador que são mais deixados de lado, ainda que com ocasionais reedições, como Patrícia Galvão (a Pagu), Osman Lins e José Agrippino de Paula. Além desses, outros autores que passaram por Curitiba, de viés mais experimental em diálogo com outras artes, continuam em parte ignorados, como Wilson Bueno, W. Rio Apa, Jamil Snege e Manoel Carlos Karam. É com essa literatura e outras que a produção de Xavier se relaciona, o que certamente a torna distinta e talvez esquisita se comparada ao cânone.
As especificidades de O mez da grippe começam logo com o título, numa ortografia diferente, de outro tempo. No caso da edição da Arte & Letra, o projeto gráfico também nos remete a esse passado, por uma capa com tipografia de jornal e desenhos de figuras humanas à moda antiga. Após uma epígrafe do Marquês de Sade, que nos evoca o macabro e o mórbido, o leitor descobre um livro que não é de fato escrito, ao menos não num sentido mais convencional. Essa “novella”, como se define o texto em suas outras edições, é quase um livro de artista, sendo composto de colagens de jornal e de cartões postais, transcrição de notícias e de documentos de autoridades públicas e trechos de entrevista com uma certa dona Lúcia, além de passagens de caráter mais poético ou até mesmo enigmático. Esse aparente caos está, na verdade, muito bem organizado em três capítulos, correspondentes a outubro, novembro e dezembro de 1918, meses nos quais Curitiba foi mais afetada pela gripe espanhola naquele ano. A capital paranaense, à época uma pequena cidade provinciana, é o espaço dos acontecimentos, com a exceção de notícias que mencionam eventos externos, como o avanço da epidemia na capital nacional, o Rio de Janeiro, e as etapas finais da Primeira Guerra Mundial. Além disso, também estão presentes aspectos caros a outros livros de Xavier, como a sensualidade, o mistério e a imagem do estrangeiro.
Em uma justaposição de elementos que cria sentidos, semelhante à técnica de montagem de Eisenstein no cinema, O mez da grippe desenvolve uma narrativa visual da crise de saúde na cidade e da omissão do poder público, sob condições próximas às de hoje. Tudo é exposto ao mesmo tempo, de modo que o anúncio preventivo do diretor sanitário da cidade apareça junto a notícias de cinemas abertos ou textos de opinião sobre a “peste” que “não visitará” a cidade. A ideia de que a população local ainda não havia contraído a gripe espanhola é logo desmentida quando cadáveres começam a se acumular e mais pessoas adoecem. A situação piora rapidamente, de forma que a publicidade de remédios e produtos de limpeza aumenta em número, bem como os relatos de desespero de dona Lúcia. Após um mês, com a diminuição dos casos, resta apenas o “grito lancinante”do doente no hospital psiquiátrico no fim do livro, que não deixa de ser, de certo modo, um grito comum a todos, deixados à própria sorte.
Por essa ligação com a história, O mez da grippe pode ser visto como um romance histórico em sua acepção mais ampla, ainda que com suas particularidades. Quanto ao tempo, de um lado, há a cronologia oficial dos meses de 1918, o tempo controlado pelo Estado, como define Pierre Bourdieu; de outro, a intensidade de cada acontecimento e a permanência de seus efeitos na memória. Como um filme gravado na cabeça de alguém, apresentam-se imagens diversas da epidemia, como numa “narrativa-kinema”, segundo Luci Collin em texto da contracapa da última edição. A nós, leitores, resta a tarefa de construir um percurso significativo para a variedade de informação presente numa narrativa de fato complexa, embora breve, como uma novella.
Ainda que seja um livro curto, não é fácil de ser editado em boa qualidade gráfica, em especial se consideradas as condições difíceis de manutenção de muitas editoras brasileiras. Por tal razão, a própria ousadia de Valêncio Xavier ao lançar a coletânea O mez da grippe e outros livros, em 1998, rendeu à sua editora o terceiro lugar no Prêmio Jabuti de produção editorial. Devido a tantos motivos especiais, o acesso a essa obra é um privilégio. Cabe-nos, portanto, usufruir da reedição de O mez da grippe com urgência neste ano de pandemia.