Talvez se possa dizer que Batendo pasto, livro de Maria Lúcia Alvim, gira em torno de um verbo: ajoujar, ligar dois bois por uma cordinha que os une pelo chifre, o ajoujo. Bater pasto significa capinar, tomar uma foice e sair cortando o mato. Abrir o livro é ver suas sete partes ligadas umas às outras por variações no uso formal e nas imagens oferecidas, que, surgidas no final de uma seção, continuam na seguinte. É obra que revela um capinar (exercício) sofisticado da linguagem para elaborar, em pé igual, a natureza e um ser mulher desejante.
Próxima dos 90 anos, Maria Lúcia é autora de cinco livros, todos hoje difíceis de encontrar. Sua volta ao mercado se deve a esforços dos poetas Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, que a localizaram e descobriram que ela deixou com o poeta Paulo Henriques Britto um livro de inéditos, Batendo pasto, escrito em 1982 e que deveria ser publicado após sua morte. Para ganho dos leitores, é convencida a publicá-lo em um ano pavoroso no qual natureza e corpo estão na ordem do dia.
Ajoujo não é uma palavra estranha a leitores de autores que figuraram os sertões e interiores; pipoca aqui e ali na obra de Guimarães Rosa, por exemplo. Em Maria Lúcia Alvim, a linguagem é excessiva em seus vocábulos e sonoridades, surge cosmopolita ou em uma fresta temporal (seja por conta de expressão popular, aparição de outro idioma ou de registro antigo do português). Como demonstra o soneto que ocupa a segunda seção, Coluna, a materialidade do corpo e do idioma (frese, fria, fétida) emerge em diálogo com fogo e um brilho, energia inexplicável que aparece sem anúncio e arrebata. É força urgente que surge pelo encontro entre o eu lírico e “Ele”, possível por elementos como a disposição ordenada dos verbos, a cesura dos versos, a rima carne/cerne. O resultado é uma mostra do domínio da autora: a lida racional faz da linguagem o palco de uma encenação intensa do imperativo do desejo.
Chama atenção a forma de figurar a experiência do ser mulher — em especial a de meia idade, algo anunciado na abertura do livro (a autora completou 50 anos em 1982). A experiência do ser mulher é espalhada de forma discreta, mas visível e importante para a obra. O ajoujo desse ser com vegetais, animais ou céu coloca ambas as instâncias (mulher e natureza) em pé de igualdade, sem que uma preceda à outra. O meio ambiente é figurado de forma autônoma, mas com deslizamento para a vivência desse ser. Vale citar a Litania da lua e do pavão, seção composta por dísticos à moda de ladainha religiosa que, em meio aos jogos sonoros com palavras de origens diversas, parece interpelar certas imagens associadas à mulher, evidenciando-as em sua artificialidade; são nomes, palavras, não são totens e surgem embaralhadas com outras possibilidades: Lua de Ismália/ Chapéu de palha.
Bater o pasto de palavras aberto por Maria Lúcia torna-se jogo divertido e intenso que nos leva a usufruir da linguagem como fruta de polpa suculenta. Solicita mastigação lenta que o sabor compensa e excede. Que possamos ter outras obras da autora circulando entre nós, em breve.