Quinquilharias e recordações: Biografia de Wisława Szymborska (Editora Âyiné) é uma oportunidade singular e, em vista da popularidade da poeta polonesa por aqui, muito desejada de se aproximar dela e se aprofundar na sua obra. O livro foi escrito por duas representantes do que há de melhor no jornalismo literário polonês: Joanna Szczęsna e Anna Bikont. As autoras refletem a maneira da escrita da sua protagonista: o livro é ao mesmo tempo leve e profundo, envolvente, repleto de detalhes inesperados e, enquanto retrata a poeta, pincela também um riquíssimo pano de fundo da história mais recente da Polônia.
Vale a pena retomar o percurso da recepção da Szymborska (1923-2012) no Brasil. As primeiras traduções de seus poemas foram obra de Ana Cristina Cesar e Grażyna Drabik, nos anos 1980. Nos anos 1990, ainda antes do prêmio Nobel (1996) que a lançou para fama mundial, foi traduzida por Henryk Siewierski. Mas sua voz se fez ouvir amplamente no Brasil graças às traduções de Regina Przybycień — cuja primeira seleta, Poemas, no ano que vem completará seu décimo aniversário, e à qual se somam as antologias Um amor feliz (2016) e Para o meu coração num domingo, esta em parceria com Gabriel Borowski e prevista para ser lançada neste ano. Em 2018, saiu também uma coletânea de suas brincadeiras literárias e colagens traduzida por mim em parceria com Eneida Favre, Riminhas para crianças grandes.
Famosa por sua ojeriza a falar de sua vida particular e a fazer qualquer tipo de confissão pública, Szymborska, depois da resistência inicial ao projeto e ao ver a qualidade do trabalho das jornalistas, concordou em conversar com elas. Em 1997, viu publicada a primeira edição da biografia e declarou: “Tive uma grande sorte que minha biografia foi escrita por duas verdadeiras jornalistas, que sabiam que não se invade a alma de alguém com seus sapatos sujos. Apareço aqui no papel de matéria-prima […], talvez até como o material de reciclagem”. A versão do livro que agora recebemos foi ampliada e enriquecida pelo material que Szymborska permitiu publicar após sua morte.
Composta por detalhes (“quinquilharias e recordações, amigos e sonhos”), a obra vai aos poucos desenhando para nós a poeta ao mesmo tempo esquiva e próxima. E entrelaça de maneira soberba “os trabalhos e os dias”, ilustrando poemas com vivências e mostrando as frações das vivências nos poemas. Como uma pintura dos mestres antigos, permite observar, ler, interpretar, sentir e pressupor não incorrendo na indiscrição de desnudar a retratada.
A vida de Szymborska aparece sempre refletida em seus escritos, poemas, resenhas, generosamente citados ao longo do livro. E é por esses escritos que conseguimos perceber algumas frações daquilo que a própria poeta tentou esconder atrás da espessa cortina de causos, anedotas e histórias contadas por ela e pelos amigos discretos, atrás daquilo que ela mesma chamou de “retrato exterior”. O “retrato interior” da poeta aparece pouco. O percebemos de relance em certas falas e podemos imaginá-lo à luz da leitura dos trechos das obras que ilustram o “retrato exterior”. É como olhar nos olhos da retratada que se esconde atrás das decorações de extravagâncias, sorrisos, bibelôs, modéstias, nos falando por meio de uma de muitas citações de poemas ainda desconhecidos por aqui que o livro traz: “sei como ajeitar meu semblante/ pra ninguém ver a tristeza constante”.
Por outro lado, ao longo dos capítulos temos a oportunidade de entender melhor sua formação. A história se inicia antes da sua concepção, acompanha sua infância em Cracóvia, a adolescência na cruel época de Segunda Guerra, uma juventude de engajamento político comunista seguido por desilusão, por amores, e a “catástrofe de Estocolmo” — como a poeta se referia ao Nobel. Entre anedotas, a biografia mostra a face brincalhona de Szymborska, dando abundantes amostras. O costume de realizar brincadeiras literárias (criação de limeriques e invenção de gêneros poéticos, por exemplo) surgiu no “colcoz literário”, uma casa em Cracóvia onde a poeta viveu durante 15 anos, na qual as autoridades comunistas alojaram literatos poloneses depois da guerra. Era um lugar ao mesmo tempo divertido e sinistro, que reunia os maiores nomes do mundo literário sob o mesmo teto e constante supervisão do partido. Szymborska e o marido, recém-casados, quando foram morar lá se viram obrigados a cederem sua cama portátil a um literato que chegou inesperadamente, sendo “talvez o único casal […] no mundo de quem levaram a única cama na noite de núpcias”. É nesta casa cheia de artistas e membros do partido que as brincadeiras literárias tornavam a realidade mais leve, davam mais brilho ao cinza do socialismo real e zombavam de tudo e de todos os egos inflados ao redor. Szymborska nunca abandonou esse costume, tendo como parceiros os amigos, seu companheiro Kornel Filipowicz e, por fim, seu secretário particular pós-Nobel, Michał Rusinek.
A edição da Âyiné, como de costume, é caprichada. Rusinek, durante palestra na UFPR em 2018, não hesitou ao dizer que Riminhas para crianças grandes é, do ponto de vista editorial, o mais belo livro de Szymborska que ele já viu. Quinquilharias e recordações nos chega em capa dura, num formato maior que costumeiro e com um belíssimo encarte de fotos da poeta e algumas de suas colagens.
Um assunto que merece um destaque à parte, e que tive o privilégio de acompanhar, é a primorosa tradução da biografia, assinada por Eneida Favre. Traduzir um texto repleto de excertos literários como este, sempre é um desafio — e se são extratos de uma estilista tão sofisticada como Szymborska, o desafio triplica. Além disso, como dito, o livro é um rico retrato da época, o que exigiu da tradutora que o munisse de rico aparato crítico de notas para explicar desde desafios linguísticos até aspectos culturais e históricos da época, aproximando leitores dos personagens mais e menos importantes da cultura polonesa que habitam em profusão as páginas do livro.
O resultado desses processos é uma biografia que leva o leitor a compreender escolhas e atos de Szymborska, a perceber suas máscaras e a observar o mundo com seu olhar ao mesmo tempo compadecido e duro, compreensivo e inconformado, sério e zombeteiro, melancólico e terno; para, por fim, nos levar a reler, com outro olhar, estes versos: “Sou quem sou./ Inconcebível acaso/ como todos os acasos”.